quinta-feira, 28 de abril de 2011

A EUROPA EM DESAGREGAÇÃO




MÁRIO SOARES – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião

1. Europeísta convicto, desde os tempos ominosos do salazarismo, devo ter sido dos primeiros a denunciar os perigos da desagregação europeia, desde os Governos da Senhora Thatcher e de Ronald Reagan. Muitos acharam tratar-se de um exagero, como a denúncia do neoliberalismo, que também fiz, que está na origem da crise global, desde 2008, que assolou o mundo inteiro e que está longe - ao contrário do que muitos pensam, na Europa - de ter passado.

Fui - e sou - um entusiasta do projecto europeu. Um projecto político, original, de paz, elaborado por aqueles que viveram a tragédia - e os horrores - de duas guerras mundiais, imbuído dos valores idealistas e humanistas do pós-guerra: os direitos humanos, a liberdade, a igualdade e a solidariedade entre os povos e os Estados e, ao mesmo tempo, um mínimo, a respeitar em absoluto, de justiça social, para todos, no trabalho e no desemprego, na igualdade entre mulheres e homens, ricos e pobres, nacionais e imigrantes, com direito aos cuidados de saúde, tendencialmente gratuitos, ao ensino, para todos, e à segurança social, na doença e na velhice, criando assim verdadeiras sociedades de bem-estar, como nunca tinha havido, em parte alguma.

Sociedades de bem-estar que se impuseram na parte ocidental da Europa, a partir do final dos anos cinquenta e fizeram o espanto e a inveja do mundo, a que nós, portugueses - e a Espanha -, libertados das ditaduras que nos oprimiram por muitos anos, aderimos no mesmo dia e por direito próprio, em Junho de 1985. Desde então, os portugueses convenceram-se de que pertenciam, definitivamente, ao chamado primeiro mundo e começaram a viver, graças ao crédito bancário ilimitado, acima das suas posses...

O mundo, entretanto, evoluiu. Deu-se o colapso do universo comunista, um colossal embuste, como então lhe chamei, na última década do passado século XX, com todas as suas consequências. Os regimes do Leste europeu converteram-se em democracias e começaram a querer integrar-se, paulatinamente, na já então União Europeia. Foi, aliás, excelente que a Europa se dispusesse, como lhe cumpria, a integrar as antigas "democracias populares" - que, no tempo da "guerra fria" não tinham nada de democracias - e a realizar, com total solidariedade e generosidade, a unidade alemã. Situação que, aliás, a chanceler Merkel, talvez por vir do leste alemão, parece ter agora esquecido...

Derrubados o Muro de Berlim e a Cortina de Ferro, a América do Norte transformou-se em hiperpotência mundial, considerando-se "dona do mundo", dado o seu imenso poderio militar e económico. Foi então que, derrotadas a sua rival URSS e a ideologia comunista totalitária, como a definiu Hanna Arendt, os Estados Unidos quiseram impor à Europa a sua ideologia neoliberal. Que viria a conduzi-la, em 2008, à crise global, que nos aflige a todos.

Os dois grandes partidos que construíram a União Europeia foram: a social-democracia (ou socialismo democrático ou trabalhismo, três nomes diferentes para a mesma família socialista) e a democracia cristã, inspirada, no pós--guerra, na doutrina social da Igreja Católica.

Esses dois tipos de partidos - socialistas e democratas cristãos - foram praticamente "colonizados" e destruídos pelo neoliberalismo. As democracias cristãs converteram-se em partidos populares neoliberais, e os partidos socialistas e sociais-democratas foram também "colonizados" pelo neoliberalismo dominante da era Bush e pela chamada Terceira Via de Tony Blair, um trabalhista convertido ao negocismo...

Tudo isso explica a circunstância de, entre os 27 Governos europeus, membros da União Europeia, 24 serem hoje ultraconservadores, completamente indiferentes aos valores do projecto europeu. O que está a corroer a União Europeia e a encaminhá-la, tristemente, para a sua desagregação. Será uma tragédia para o equilíbrio mundial e, em especial, para o Ocidente, no seu conjunto: a Europa, os Estados Unidos-Canadá e a Ibero-América.

É verdade que a esmagadora maioria da população europeia - cada vez mais distante dos seus "líderes" europeus - está longe de aceitar este descalabro, marcado pelo regresso aos nacionalismos, que tanto mal nos fizeram no passado, e pelos egoísmos, públicos e privados. Tenho esperança de que os povos europeus despertem e reajam contra a falta de solidariedade que caracteriza hoje os Estados mais fortes da União e outros, que nem sequer são fortes, como a Finlândia, agora ultraconservadora, que já se esqueceu dos ataques que sofreu durante a II Guerra Mundial. Lembro-me da generosidade do antigo primeiro-ministro finlandês Kalevi Sorsa, de quem fui amigo, e comparo-o com os pigmeus que hoje querem governar a Finlândia, sem valores éticos e com base na hostilidade a Portugal. Que diferença abismal. Hoje, os finlandeses estão convencidos de que são os mercados especulativos e as criminosas agências de rating que podem destruir nações, com quase nove séculos de história independente, como Portugal... Que ilusão tremenda!

Os nacionalismos egoístas conduzem, como sucedeu no passado, a guerras cruentas. Julgo que os europeus não querem voltar aos horrores desse tempo. E, pelo contrário, a solidariedade entre os Estados e as nações leva-nos ao diálogo, ao bom entendimento e à paz, em que a Europa, com todas as suas fragilidades, tem vivido desde há sessenta e seis anos. É isso que queremos perder? Quero acreditar que o bom senso dos povos europeus teme esse imenso perigo que, por causa da ganância dos mercados, nos está a bater à porta...

Portugal no contexto europeu

2. Na semana passada, que foi horrível, Portugal, à beira do abismo, foi obrigado a pedir um apoio de 80 mil milhões de euros, salvo erro, ao Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, ao Banco Central Europeu, à Comissão Europeia e ao Fundo Monetário Internacional. É incrível como a Europa e os Estados Unidos se deixem guiar pela ganância dos mercados especulativos - e das agências de rating que, sem escrúpulos, lhes fazem o jogo - e que, ainda para mais, estão na origem da crise que nos afecta. É um sintoma terrível da crise, ética e política, que o Ocidente atravessa que, se não há a coragem de arrepiar caminho, nos levará, sem dúvida, a uma grande catástrofe.

Enfim, depois da Grécia e da Irlanda, países paradigmáticos, em termos europeus, por diferentes razões - e da Islândia, que não pertence ainda à União Europeia -, foi a vez de Portugal, como há alguns tempos os jornais internacionais, repetindo o que diziam as agências de rating, insinuavam. Mas descansem os interessados. A ganância não pára por aqui. Há outros Estados europeus que estão na lista dos sacrossantos mercados da especulação: a Bélgica, a Espanha (que é a terceira ou quarta economia europeia), a Itália e a própria França, se lá chegarmos. No fundo, trata-se de liquidar o euro, que faz sombra ao dólar, seguindo-se a desintegração da União. Uma catástrofe para o Ocidente e para o mundo, desregulado pelos mercados, em que vivemos...

O ataque dos mercados contra Portugal surgiu num mau momento, na véspera de se abrir uma crise política, que veio acrescentar-se à crise financeira e económica e que levou à demissão do Governo Sócrates e à marcação de novas eleições legislativas, um ano após as anteriores. Os partidos da oposição - uniram-se à direita e à esquerda do PS, todos, sem excepção - para derrubar o Governo Sócrates. Fizeram, perante o País, uma demonstração de irresponsabilidade e de insensatez que, a meu ver, lhes irá custar caro.

Mas isso pertence já ao passado. A seu tempo se verá. Agora abriu-se a fase das negociações com os representantes da troika - Fundo Europeu, Banco Central Europeu e Comissão -, à qual se juntou o tão temido Fundo Monetário Internacional, presidido pelo francês Dominique Strauss-Kahn, socialista e provável candidato do PS francês às próximas eleições presidenciais. Curiosamente, ou talvez não, foi dele que partiu o alarme para a necessidade de reduzir as taxas de juro (que nos querem impor), para que sobre dinheiro bastante para que possamos evitar a recessão anunciada, investindo nas empresas e diminuindo fortemente o desemprego.

Foi uma voz sensata, que partiu donde menos se previa, e que a troika europeia ainda não quis adoptar. O que prova o estado a que a União Europeia chegou, desgraçadamente.

Esperemos que as negociações que o Governo vai liderar corram bem. Os dois principais partidos - o PS e o PSD - precisam absolutamente de se entender, abandonando, por agora, as querelas eleitorais. É o que o eleitorado português, que sempre deu mostras de sensatez, espera de ambos. Quem mais propaganda eleitoral quiser fazer, neste período, mais perde. Estou convencido disso. O PP tem estado, sabiamente, calado. Não percebeu ainda, com razão, de que lado correm os ventos. E como quer um pouco do poder, não sabe ainda com qual dos dois principais partidos se poder vir a aliar...

Os partidos da esquerda radical - PCP e Bloco - auto-excluíram-se do jogo do poder. Nunca apreciaram o projecto europeu. São partidos de mero protesto. O eleitorado não percebe o que querem. Voltar ao PREC? No actual momento europeu e mundial? Não lhes basta o exemplo de Cuba, que tanto apreciaram sempre, o país mais triste e empobrecido da Ibero-América?

Há ainda os parceiros sociais, que são extremamente importantes, no futuro. E a sociedade civil, que se tem manifestado em favor do entendimento dos partidos, para superar a crise em que estamos. É importante. Para que os partidos aprendam a dialogar uns com os outros e a pôr fim às agressões mútuas em que se comprazem.

Numa situação tão crítica - que a comunicação social, infelizmente, tem empolado de todas as maneiras - é preciso ter confiança no povo e esperança no futuro. Há muitas razões para isso. O que conta são as pessoas. E estas vão reagir e vencer os desafios que se lhes põem. Como a União Europeia, no seu conjunto. É uma questão de tempo.

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