terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

“CAPITALISMO DE ROSTO HUMANO” – I


Mercado a céu aberto em Luanda
Martinho Júnior, Luanda

1 – Num recente artigo publicado no Jornal de Angola, o seu Director, José Ribeiro assumiu a advocacia do “capitalismo de rosto humano”, ou seja, “capitalismo com justiça social”, a propósito do rumo que está-se a desenhar para a política, a economia e a sociedade angolana…

Dizia ele como se fosse um ilusionista:

“Hoje o regime tem outro rosto.

Mas no essencial, persegue os mesmos fins e traçou os mesmos objectivos: levar a todos os angolanos paz, prosperidade e bem-estar.

O Presidente José Eduardo dos Santos disse, recentemente, aos diplomatas estrangeiros, algo que é importante analisar: o capitalismo em Angola está articulado com uma adequada política de justiça social.

Em linguagem jornalística, o capitalismo em Angola tem rosto humano.

Esta declaração é tanto mais importante quanto mais se assiste hoje a um questionamento dos sistemas sociais e políticos.

O compromisso assumido por José Eduardo dos Santos faz toda a diferença, no momento em que se assiste uma interessante discussão sobre o rumo a seguir depois da hecatombe de Wall Street em 2008.

Os resultados dessa catástrofe estão à vista na Zona Euro onde o desemprego atinge números alarmantes e as bolsas de pobreza alastram mesmo aos países mais desenvolvidos.

O sistema está bloqueado nas dívidas públicas e as conquistas sociais e os direitos humanos são atacados no coração da democracia.

Ante as tragédias humanas que assolam a Europa, os EUA e os países mais desenvolvidos, José Eduardo dos Santos sentiu necessidade de dizer aos angolanos que o Executivo evita soluções que afectem as populações e prefere seguir por um capitalismo com justiça social.

E esta semana o Presidente veio acrescentar que a iniciativa privada tem um papel de grande responsabilidade na execução dessa política de rosto humano”…

Se é o MPLA que segue a ideologia do “socialismo democrático”, por que razão o estado (o Jornal de Angola é o jornal oficial do país) traduz isso para “capitalismo de rosto humano”?

2 – A linha social democrata cada vez mais vazia, de afirmações como as enunciadas pelo Director do Jornal de Angola, duma social democracia hipócrita, convertida ao liberalismo conforme aos postulados da corrente globalização, foram tão incisivas que até o enunciado do “socialismo democrático”, o “socialismo democrático” com que se faz identificar o MPLA (conforme acontecia há cerca de um ano), se apagou como que por magia do vocabulário empregue no tal artigo e como se todos aqueles que ao longo de décadas de movimento de libertação se pudessem deixar subverter em consciência por algum ilusionismo deste género!

Como se isso não bastasse, socorre-se do que diz respeito ao crescimento, para confundir o que é efectivamente do foral do desenvolvimento sustentável, que tem a ver também com equilíbrios sociais, com solidariedade social, com comportamentos assumidos sobretudo por via de organizações sociais, com a luta contra o subdesenvolvimento, com políticas e ideologias vocacionadas para o homem e para o respeito para com a natureza!

O “diktat” do petróleo não traz só benefícios: há um reverso de medalha cujo peso ainda está longe de completamente se avaliar no campo sociopolítico sobretudo!

Isso é tanto mais importante a considerar quanto Angola ainda não se emancipou desse “diktat” do petróleo, com todos os vícios que isso tem acarretado à vida nacional, inclusive em termos de danos às formas e métodos de lidar com questões de soberania e, sendo esse um dos factores fulcrais que está nos fundamentos da contradição riqueza / pobreza, ou em termos das actuais possibilidades próprias de Angola, que se medem também no gigantismo financeiro (e sua sobranceria em relação ao próprio estado) desse sector / face à atrofia dos outros!

O país está de facto a crescer e o “canteiro de obras” verifica-se até por aqueles que não estão no terreno, pelo Google Earth, por exemplo: tem havido muita engenharia na construção e obras públicas, tem havido preocupação em relação ao equipamento social que serve à educação e à saúde, há até, nesse aspecto, avanços consideráveis se compararmos ao que o colonialismo português realizou durante 500 anos em Angola…

O país cresce, mas não de forma suficiente para que em reflexo desse crescimento ganhe outras pernas para andar e por isso ganhe velocidade no que diz respeito a uma verdadeira sustentabilidade em termos de desenvolvimento.

Para além da perna que constitui o sector do petróleo, as outras pernas continuam demasiado raquíticas (umas), paralíticas (outras), com assimetrias consideráveis nos reflexos múltiplos que isso causa!

Sob o ponto de vista sociológico, o próprio sector do petróleo é introdutor de algumas das castas que se vão tornando até visíveis na geografia urbana da capital e se manifestam como se Angola fosse mais um país das Arábias, quando é um país com tantos traumas acumulados durante décadas, independentemente da justeza ou não das guerras do percurso histórico de Angola vitoriosa na luta contra o colonialismo, o “apartheid” e algumas das suas sequelas!

O subdesenvolvimento do país reflecte a sujeição às actividades primárias da exploração do petróleo, do gás e de outros minérios, sem que haja um aproveitamento industrial multiforme, por que os outros sectores de actividade quase não arrancaram!

Lutar contra o subdesenvolvimento exige muito mais do que lutar contra a fome e a pobreza, pois a luta contra o subdesenvolvimento tem abrangências antropológicas, económicas e psicológicas, para citar alguns dos aspectos e factores que devem merecer atenção, que vão muito para além de acções piedosas, ou cosméticas.

As assimetrias entre regiões, com a tendência não combatida para as populações continuarem a concentrar-se nas grandes aglomerações urbanas do litoral, ao mesmo tempo que há extensões imensas despovoadas e não aproveitadas, é outro quadro que prevalece quase inalterável, quando faz parte dum exercício saudável de soberania encontrar soluções para acabar com essa tendência.

Não é por acaso que periferias como Cabinda e o leste do país estão a ser alvo de acções de desintegração e da soberania, sem respeito até pela história da libertação de Angola do colonialismo, do “apartheid” e de algumas das suas sequelas!

Colocar capacidades humanas ao nível da prioridade que o homem merece nos edifícios que foram e estão sendo construídos, em especial aqueles que servem a educação e a saúde, é uma das actuais utopias, se observarmos os comportamentos correntes, muitos dos quais são de autênticos mercenários!

O relacionamento de Angola com Cuba no campo da formação no sector da saúde e da educação é o que reúne maiores esperanças e expectativas para além das técnicas de aprendizagem, pelo que é indispensável aprofundá-los sob os pontos de vista éticos e deontológicos, até pela sua perspectiva no que há a alterar em relação à mentalidade mercenária que se instalou por via dos “cabritismos”, uma corrupção endémica, que se tornou extensa e parece não ter fim.

É impossível avaliar quantas mortes os procedimentos mercenários no quadro da saúde têm causado em todo o país ao longo dos anos, mas no sector deveriam incidir inspecções muito mais rigorosas das que estão em prática, auscultando sobremodo os utentes dos sistemas de educação e saúde!

Onde estão as inspecções do estado e os inquéritos?

Por exemplo a Maternidade Lucrécia Paim, a maior de Angola: o edifício é do estado, os equipamentos são do estado, o corpo de assistência é pago pelo estado, mas o que faz às parturientes serem obrigadas a pagar pelo medicamento mais insignificante, inclusive quando contraem outras enfermidades dentro do próprio hospital durante estadias mais prolongadas?

O que acontece quando não têm possibilidades de pagar?

Não haverá outra forma de proteger as mães e os bebés, nem uma forma sociologicamente mais saudável de nascer?

Em Luanda há a criação de mais hospitais e maternidades, é um facto, mas será que nas novas unidades os comportamentos dos respectivos corpos clínicos e de assistência vão ser os mesmos?

Os jornais vão dando notícias provenientes dos responsáveis, mas alguma vez alguém já abriu o livro para os doentes que muitas vezes se têm de sujeitar a quem os “atende”?

Na sociedade angolana aos traumas da guerra juntam-se os traumas próprios do capitalismo neoliberal, forjados no abismo das desigualdades e por vezes da forma mais selvagem, o tal “capitalismo de rosto humano” que o ilusionista José ribeiro “defende”!

Por muito que custe aos nossos engenheiros considerar que é com o cimento e o alcatrão que alguma vez se vão construir relacionamentos humanos saudáveis, relacionamentos sociais com carácter próximo de justiça social, é uma completa mistificação e é o próprio quotidiano que quantas vezes assim o prova!

Foto: mercado a céu aberto em Luanda.

Ver: Há um ano – 18 de Fevereiro de 2011 - “MPLA reafirma socialismo democrático” – http://www.outroladodanoticia.com.br/inicial/8146-mpla-reafirma-socialismo-democratico-.html.

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