segunda-feira, 30 de julho de 2012

A AMPLA CIDADE



Rui Peralta

Desde que os USA lançaram duas bombas atómicas sobre o Japão, em 1945, existiram múltiplas tentativas de furar o monopólio nuclear militar norte-americano. Quatro anos depois, em 1949, A URSS anuncia ao mundo a quebra desse monopólio ao apresentar as suas armas nucleares, facto que levou á chamada “coexistência pacífica”. Mas o clube não ficou por muito tempo a dois. A Grã-Bretanha foi convidada a entrar, pelos USA e apesar de todas as pressões e pedidos, a França e a China foram os próximos membros. Foi assim que na década de 70 do século passado os 5 membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU eram potências atómicas.

Foi então quando os 5, sob proposta dos USA, decidiram encerrar o clube a outros candidatos e promoveram um Tratado de näo-Proliferaçäo de Armas Nucleares (NNPT), um tratado que em troca de ser assinado, ou seja se todos os que não pertenciam ao clube renunciassem definitivamente a vir a pertencer, oferecia duas coisas: o direito a desenvolver a energia nuclear para fins pacíficos e a promessa de que os 5 negociariam uma redução dos arsenais nucleares, quiçá até ao nível zero. Todos os países, excepto Israel, India e Paquistão, assinaram o NNPT. Como resultado primeiro em breve o clube dos 5 já era de 8, pelo menos de facto. O resultado segundo foi que nem os 5 – e muito menos os 3 que não assinaram o tratado – reduziram os respectivos arsenais nucleares. O resultado terceiro foi um problema técnico, que põe em causa a figura dos fins pacíficos.

O desenvolvimento nuclear implica elevados níveis tecnológicos e científicos que os deixa numa zona cinzenta entre o pacifico e o militar. Os que assinaram o tratado, ao desenvolverem as tecnologias nucleares para uso civil (centrais nucleares, por exemplo), acabaram por chegar a um ponto em que, tirando as suas declarações, o uso a atribuir ou o passo a dar, deixa-os com acesso ao clube dos 5 + 3. E esse direito näo lhes pode ser negado pois, ao fazê-lo, estariam a negar o tratado. Esta é a questão que está em debate com o Irão. O argumento dos USA (o primeiro dos cinco que propuseram o NNPT) e de Israel (um dos três que näo assinaram o NNPT), morre por terra neste aspecto. Näo se pode acusar o Irão de estar a desenvolver o nuclear militar, até porque pode estar a fazê-lo, para fins pacíficos. A única barreira é a palavra do Irão, que continua a afirmar que é para fins pacíficos. O que os USA e Israel estão a fazer é apenas uma suposição: o Irão pode fazer armas nucleares. Mas essa suposição é válida para todos os que assinaram o tratado, pois chega a um ponto de desenvolvimento em que as fronteiras entre a tecnologia civil e a militar são demasiado ténues e a questão dos fins pacíficos passa a ser meramente especulativa.

A Coreia do Norte decidiu assumir o seu direito e rompeu com o NNPT e pode considerar-se a nona potência nuclear declarada. Mas há o Brasil, a África do Sul (o que deixaria os Brics como um clube do nuclear), a Argentina e a Austrália, todos entre o ter e não ter que os coloca no dilema shakespeariano do ser ou näo ser, para além do Irão e de alguns daqueles países da Ásia Central (ex-repúblicas Soviéticas).

No fundo o mundo move-se no sentido de uma proliferação generalizada e pouco há a fazer em relação a isso. É ingénuo pensar que um acordo tácito (como o que existiu entre USA / URSS e India / Paquistão) seja suficiente para evitar os problemas decorrentes da proliferação. É que esta é uma consequência das dinâmicas da crise sistémica global e vai gerar dinâmicas intrínsecas ao processo de proliferação e suas implicações geoestratégicas e geopolíticas. Ou seja no actual quadro näo há solução e como ainda näo existe outro quadro, as coisas vão andar por si, até todos os elementos do problema assentarem, um pouco como se faz com as poeiras nucleares. Até um dia…

Longe destas questões atómicas andam os afegãos. Com um elemento tão destrutivo como o átomo para fins militares: a luta antiterrorista que os USA implantaram no Afeganistão. O presidente afegão Hamid Karzai decidiu que já chegava de ataques aéreos a destruírem lares no seu país e protestou indignado, no dia 12 de Junho deste ano: “Todos os dias há acçöes policiais nos USA…Mas näo usam aviões para bombardear os sítios (…) ”. Claro que os seus protestos e a sua indignação são como os risos das hienas e as lágrimas dos crocodilos. É um pouco como a história do incendiário que chama pelos bombeiros porque a casa está a arder. Karzai é tão responsável como as tropas invasoras pelo que sucede no seu país.

São milhares de casos que desde a invasão norte-americana já causaram a morte a milhares de civis. Ainda no passado mês de Junho, pouco depois das declarações do presidente Karzai, aconteceu um desses milhares de casos que já se tornaram quotidianos no Afeganistão. Parece que um grupo de Talibans foi detectado numa aldeia da Província de Logar, a sul de Cabul. Nessa aldeia decorria uma cerimónia nupcial e o grupo Taliban refugiou-se na casa onde decorria a cerimónia, fazendo reféns as famílias que lá se encontravam. As forças norte-americana e afegãs cercaram a casa e quando o tiroteio se iniciou pediram suporte aéreo que, de forma pronta, acudiu ao local e fez desaparecer a residência, os taliban e…os reféns, entre eles 9 crianças. Näo se tratou de um erro, nem de um caso isolado. É uma constante do quotidiano dos afegãos.

O primeiro caso documentado consta num relatório de Dezembro de 2001. Um B-52 e dois B-1B, bombardeiros, usaram bombas guiadas, de precisão, eliminando 110 dos 112 aldeões de uma pequena localidade afegã. Dai para cá, o poder aéreo norte-americano, pilotado ou versão drone, tem eliminado Afegãos, Paquistaneses e Iraquianos, numa sinistra moda comportamental e sempre com o mesmo padrão: residências, festas, cerimónias, encontros religiosos e comunitários, etc.

Para os padrões militares yankees o valor de uma vida afegã é nulo. Actualmente os afegãos (e os paquistaneses das áreas tribais fronteiriças) conhecem as regras da guerra americana: näo há ritos sagrados públicos ou privados. Näo há funerais, nem cerimónias de casamento, nem aniversários. Parece ser a única forma de os mortos serem enterrados em paz, os novos casarem-se e os aniversariantes fazerem anos durante mais vezes nas suas vidas. Para trás ficam as tradições tribais. É mais seguro a tribo viver sem os cerimoniais tradicionais. Este fenómeno antropológico que alterou os etnemas da região é revelador do número de mortos causados nesta guerra.

A estes crimes há que juntar a morte dos 24 soldados paquistaneses, em Novembro do ano passado, devido a bombardeamentos aéreos norte-americanos na fronteira, ou as imagens que revelam soldados norte-americanos urinando sobre os cadáveres de talibans, a queimarem exemplares do Alcorão e mulheres violadas por soldados norte-americanos. Näo é por isso de admirar a crescente ocorrência de ataques de soldados e policias afegãos a forças militares dos USA.

Uma certeza há: quando os USA abandonarem a região näo deixarão atrás de si apenas terra queimada. Para trás ficarão também as aldeias vazias, as mulheres violadas e as crianças de olhar vazio. E toda a região virá assinalada nas cartas geográficas do Purgatório.

Estamos todos, ao fim e ao cabo, numa situação algo idêntica ao que estavam os ingleses, quando em 1215 impuseram á monarquia britânica um documento de liberdade que estabelecia os seus direitos civis: a Magna Carta. Quase 8 séculos depois a Magna Carta continua a ser um documento de referência na Historia da humanidade, embora apenas uma pequena parcela dessa humanidade tenha alguma vez usufruído alguns dos direitos consignados nesse documento. Em 1759 publicou-se a primeira edição académica da Magna Carta, pela mão de William Blackstone, que assim a tornou numa das fontes da Constituição dos USA.

Hoje são os ocupantes da Casa Branca os primeiros que desmantelam essa preciosa fonte do seu direito constitucional. A Carta das liberdades, o primeiro dos documentos da Magna Carta, é o alicerce dos direitos fundamentais dos povos de língua inglesa. No seculo XVII a carta foi enriquecida pela lei do habeas corpus. A fobia com a segurança, a militarização, a volatilidade dos mercados estão a dar cabo do velho sonho cartista e o habeas corpus fica muitas vezes na gaveta, assim como uma figura em vias de desaparecer: a presunção da inocência.

O segundo documento da Magna Carta é a Carta do Bosque. Os bosques eram terras nutridas, mantidas em comum, com riquezas disponíveis para todos, preservado para as gerações futuras, também elas, usufruírem dessas riquezas. O bosque fornecia alimento, combustível, materiais de construção. No seculo XVII a Carta do Bosque sofreu o primeiro golpe com a prática depredatória do capitalismo. Dai para cá é como se nunca tivesse existido tal documento. As multinacionais do sector mineiro, petrolífero, agronegócios, turismo, tornam-se proprietárias de todas as fontes comuns de riqueza. Aquilo que é de todos torna-se pertença de muitos poucos e todos os outros têm de pagar para usufruir. Os que näo têm dinheiro para pagar näo usufruem. Era exactamente isso que a Carta do Bosque pretendia evitar e que na sua época conseguiu travar com êxito. Um excelente exemplo de continuidade foi dado pela Bolívia, quando organizou uma cimeira de povos, com 35 mil participantes de 140 países, de onde saiu uma Carta dos Bosques: a Declaração de Direitos da Terra Mãe, um documento chave das comunidades indígenas do mundo.

Direitos, liberdades e garantias. Terminologia que näo faz parte dos actuais Estados de Direito, que deixam de ser estados-nação e transformam-se em estados-mercado. Estado, nação, mercado e Direito. O Estado é sempre uma máquina repressiva. Pode ter (e tem) outras funções, como a coordenação, a função social e outras que lhe queiram arranjar (e que com certeza cumpre) mas é sempre, onde quer que seja uma máquina de repressão. Essa é a sua condição de existência. Um Estado Social é uma máquina repressiva que utiliza a política social como centro da sua actividade. O Estado Liberal, é uma máquina repressiva que utiliza o mercado como sua actividade central e por aí fora. As nações são espaços territoriais, podem ser fontes de cultura, razão da nossa alma e são tudo isso, mas primordialmente são espaços territoriais, delimitados, dentro do qual nos movimentamos, exercemos a nossa actividade, interagimos, etc. Dos mercados e do Direito é como o comer e sermos bem comportados. Se não pertencemos ao mercado não comemos (só comemos se formos mercadorias) e as leis se não as cumprirmos vamos presos, ou sofremos outra pena, ou até servem os nossos interesses, hoje, mas já não servem amanhã, servem para me defender do outro ou dos outros, mas também serve para o outro ou os outros se defenderem de mim. No meio disto tudo estão os direitos (sem serem o Direito) as liberdades e as garantias. Para usufruirmos.

Um dos direitos que ultimamente querem que deixemos de usufruir é o de viajar. Após o 11 de Setembro surgiu uma nova instituição: a Tirania Aeroportuária. Depois as burocracias aumentaram e vieram os lobbys das empresas de segurança a venderem produtos ao estado e a pagarem chorudas comissões aos decisores para as aplicarem e lixarem-nos a vida. A todos. E assim os aeroportos tornaram-se imensos campos de observação de prisioneiros. Todos os que näo entram nas salas VIP são potenciais terroristas.

Os obstáculos para viajar são mais do que muitos. Temos de andar perdidos nos consulados, autênticos espaços de tortura e atentados á inteligência. E temos de pagar. Pagamos os vistos, (um roubo), os bilhetes de passagem (o que é logico) se formos de avião pagamos umas taxas mal explicadas, cobradas pelas companhias, porque os estados cobram a elas (um roubo) e depois de pagarmos tudo isto e sermos roubados nos vistos e nas taxas incluídas nos preços dos bilhetes, lá vamos para os campos de tortura aeroportuária, onde nos transformam em terroristas da pior espécie. O curioso é que chamam a isto a livre movimentação de pessoas e bens. Se näo pagamos ficamos. Se pagamos vamos mas sujeitos ao tratamento que se aplica aos objectos, pois passamos a um estado de näo-pessoa. A näo ser que possamos viajar VIP onde a coisa é mais leve.

Até ao fim da Primeira Guerra Mundial, um décimo do que passamos hoje para viajar era considerado próprio dos estados “bárbaros” (Império Russo, Império Otomano, etc.). Passaportes e coisas parecidas apareceram mais tarde, mas nem sempre exigidos. A Sociedade das Nações em 1920 regulou sobre a estandardização dos passaportes e a coisa foi andando devagarinho. A II Guerra Mundial trouxe consigo mais papelada, acompanhada do conto que era só para o período de guerra. A guerra acabou e a papelada ficou.

Os nazis, os fascistas e os estalinistas deixaram por aqui as suas marcas, as “democracias” do ocidente deixaram essas marcas e acrescentaram mais umas patifarias para ganhar uns cobres (quanto mais näo fosse para pagar o salário do pessoal dos consulados) e em 1980 a Organização Internacional para a Aviação Civil (uma agencia “especializada” da ONU) estandardizou os passaportes a nível mundial. Burocratizado, institucionalizado e estandardizado. É o passaporte. O documento que nos permite sair de um espaço limitado por fronteiras, para entrar noutro espaço limitado por fronteiras. E aos poucos vão sendo acrescentados elementos aos passaportes, como por exemplo os dados biométricos.

E aquilo que a monarquia britânica no seculo XIII teve de aceitar como documento regulador é agora completamente esfrangalhado e deitado ao cesto dos papéis. Em muitos casos com o ar idiotamente conformado de todos nós. Sem dúvida…Urge uma nova Magna Carta!

Fontes
Immanuel Wallerstein; Armamento nuclear: hipocresías escandalosas; http://www.jornada.unam.mx
Tom Engelhardt; Till Death Do Us Part; http://www.tomdispatch.com
Tom Engelhardt; Alien visitations; http://www.tomdispatch.com
Tom Engelhardt; The wedding crashers; http://www.tomdispatch.com
Tom Engelhardt; Are afghan lives worth anything; http://www.tomdispatch.com
Tom Engelhardt; Top gun no more; http://www.tomdispatch.com
Noam Chomsky; La Carta Magna es el destino, nuestro destino; http://www.jornada.unam.mx
William Jackson; Another Lost Freedom: The Freedom To Move; http://www.textbookcheck.com
New York Times, 11/06/ 2012; 13/06/2012; 24/06/2012; 27/06/2012; 29/06/2012; 04/07/2012; 11/07/2012; 17/07/2012
The Guardian. 07/06/2012; 11/06/2012;
Washington Post; 11/06/2012;

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