quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Moçambique: OS ROSTOS DA POBREZA URBANA

 

Verdade (mz)
 
Como um véu que impede a percepção dos verdadeiros problemas sociais das grandes cidades, a pobreza urbana em Moçambique confunde-se com a ociosidade. Crescendo aos saltos, presentemente, o dilema é conhecer os níveis que a mendicidade atingiu nos últimos anos. Até aqui, sobretudo neste mês sagrado de Ramadan, a prática concentra-se nos estabelecimentos comerciais e mesquitas. E, do outro lado da barricada, o Governo prepara-se para punir centenas de moçambicanos que saem às ruas para ganhar a vida pedindo esmola.
 
Nas primeiras horas do dia, centenas de pessoas, ou mesmo famílias inteiras, deixam silenciosamente as suas casas na periferia das principais cidades do país e caminham alguns quilómetros até ao centro da urbe. Os destinos são as ruas mais movimentadas ou locais de grande aglomerado, semáforos e os estabelecimentos comerciais.
 
O parco português da maioria é su­ficiente apenas para dizer aos transeuntes e proprietários das lojas: “Ajuda, patrão”. Ao meio-dia, os espaços escolhidos pela maioria são as mesquitas onde, ao chegar, se estende pelo passeio ou instala-se junto à porta.
 
Esse grupo de moçambicanos abandona os bairros pobres à procura do sustento diário no coração económico da cidade. E o movimento é intenso durante o meio-dia e no ­final da tarde. É como se uma espécie de muro da miséria que separa a periferia e a zona urbana tivesse sido derrubado.
 
À mercê da boa vontade
 
Quem consegue ter um pequeno negócio ou tirar algo da sua machamba, por pouco que seja, está satisfeito. Há moçambicanos que não conseguem renda su­ficiente para colocar o pão na mesa. A solução tem sido esperar pela ajuda do Governo, porém, enquanto a mesma não chega, a maioria opta por praticar a mendicidade. Laura Victor é um exemplo disso. Por volta das 6h30, ela deixa o sossego da sua casa e caminha pelas ruas de Nampula à procura de sustento diário.
 
Carregando nos braços um bebé com menos de um ano de vida, Laura inicia a sua jornada pelas artérias de Nampula. Primeiro, anda de loja em loja no centro da cidade, onde recebe algum dinheiro e uma pequena quantidade de pão, passa pelo Mercado Central e, por fi­m, desloca-se até ao mercado dos Bombeiros, o epicentro dos comerciantes estrangeiros que nesta época do Ramadan são os “salvadores” dos mais carenciados.
 
Laura desconhece a sua idade, mas aparenta pouco mais de 35 anos. Ela, o seu marido, desemprego, e mais quatro ­lhos dividem uma casa de apenas duas divisões, feita de blocos de areia, localizada algures no bairro dos Belenenses. A cozinha resume-se a um fogão improvisado do lado de fora da habitação, até porque nem precisaria de muito espaço, pois a farinha de mandioca e peixe seco (conhecido por papaim) é a única dieta da família.
 
Quase todos os dias, comem “caracata” – xima feita com farinha de mandioca – e “papaim” no almoço e no jantar. Quando pode, aos fi­ns-de-semana, coloca na mesa arroz e feijão. São 11h45. Laura ainda não ingeriu qualquer alimento, e justifi­ca-se: “Estou de jejum, só poderei comer no fi­nal do dia”. Mas, noutros dias, ela e a sua família são obrigadas a abster- -se de comer por não terem comida.
 
Até ao meio-dia, já havia amealhado de esmola 150 meticais, quantia com a qual adquirirá alguns produtos alimentares para quebrar o jejum. “Sou muçulmana, estou aqui nas ruas a mendigar para poder ter algo no fi­nal da tarde, uma vez que estamos no mês de Ramadan”, disse.
 
Faltam poucos minutos para as 12h30. Um movimento incomum de pessoas a caminhar apressadamente em direcção às principais mesquitas no centro da cidade de Nampula. São homens, alguns em cadeiras de rodas, mulheres cobertas de capulanas, e crianças que deixam as ruas e as portas dos estabelecimentos comerciais. Os novos pontos de encontro são as mesquitas, sobretudo as que são frequentadas pelos proprietários das lojas e outros indivíduos com um certo poder ­financeiro.
 
A conta-gotas, eles vão chegando como quem não quer nada. Num piscar de olhos, a concentração de mendigos vai aumentando: a­final de contas todos esperam ganhar algum dinheiro ou algo para comer. Com as mãos entendidas, aparências desleixadas e expressões faciais de quem não se alimenta há alguns dias, eles interpelam todos os crentes que entram nas mesquitas. Laura Victor também faz parte do grupo de pessoas que se aproveita do mês sagrado de Ramadan para conseguir algo para o sustento da sua humilde família.
 
Ao contrário da casa de Laura, em alguns lares como o de Cassimo Mahomed, “caracata” e “papaim” duas vezes por dia é uma raridade. Com um agregado familiar constituído por sete pessoas, ele está atrás de trabalho.
 
Emprego não há, sobretudo para um indivíduo que depende de uma cadeira de rodas para se locomover, tanto no comércio formal como no informal no centro da cidade, que emprega muito mais gente. De vez em quando, surge um biscate: consertar pequenos aparelhos electrónicos. “Passo o tempo inteiro de serviço e, no final do dia, o dinheiro que recebo não chega para comprar duas latinhas de farinha”, reclama.
 
Para sustentar a sua família, Mahomed não teve outra alternativa senão recorrer às ruas da cidade. Todas as manhãs, ele sai de casa muito cedo e instala-se nas principais artérias da urbe, e no final do dia desloca-se até à mesquita Fatimah onde, durante o mês de Ramadan, é servida comida a pessoas carenciadas. Há aproximadamente quatro anos, ele pratica a mendicidade e, em média, por dia amealha 200 meticais e alguns pãezinhos.
 
Ganhar a vida nas ruas
 
Aos 27 anos de idade, Faurido Joaquim é um homem formado pela necessidade. Pratica a mendicidade para sobreviver nas ruas de Nampula. O jovem morava em Quelimane com os seus pais, porém, decidiu abandonar a sua terra natal para viver com um amigo na considerada capital do norte que garantia comida, cama e roupa lavada. Quiseram os insondáveis desígnios da vida que a sorte fosse outra: o companheiro que lhe proporcionava uma vida “principesca” perdeu a vida.
 
Desde então a vida de Joaquim nunca foi a mesma. Sem parentes em Nampula e, muito menos, uma ocupação que lhe garantisse o sustento diário, ele viu-se obrigado a viver na rua. Presentemente, faz do abandonado jardim do Parque dos Continuadores da Revolução o seu endereço. Com outros cinco companheiros, durante as noites eles dividem um cubículo com espaço para albergar apenas dois indivíduos.
 
Joaquim vive de esmola e pequenos trabalhos que faz quando o comboio chega de Cuamba, província de Niassa, e não só. Na lógica de “a ocasião faz o ladrão”, o jovem confessa que esporadicamente, principalmente quando não tem o que comer, apodera-se de bens dos transeuntes. Nesta época de Ramadan em que grande parte das mesquitas em Nampula oferece comida para as pessoas carenciadas que estejam a jejuar, ele adquiriu algumas vestes islâmicas para usufruir da refeição.
 
Assim como eles, existem muitas Laura, muitos Mohamed e Joaquim espalhados pelo país a pedir esmola para enganar a fome dos seus respectivos agregados familiares, castigados pela miséria e o desemprego. Porém, o que esses moçambicanos não imaginam é que um documento que tem a particularidade de passar a criminalizar a mendicidade e a vadiagem vai a debate público. Estes crimes são novos e não constavam da proposta proveniente do Governo.
 
No que toca à mendicidade, a proposta do Código Penal diz que “aquele que se entregar habitualmente à ociosidade, sendo capaz para o trabalho, sem ter pensão ou rendimento que lhe assegure meios bastantes para a subsistência, ou para prover a sua subsistência e não tendo domicílio certo, não provando a necessidade de força maior, que o justi­fique de se achar nessas circunstâncias, será declarado vadio e punido com pena até seis meses”. Serão punidos todos aqueles que são capazes de ganhar a sua vida pelo trabalho, mas que pautam pela mendicidade.
 
Um problema com barba branca
 
No ano passado, o Governo, através do Ministério da Mulher e da Acção Social, veio a público reconhecer (literalmente) que este assunto atingiu níveis alarmantes, não só na cidade de Maputo, mas em todo o território nacional, com destaque para as capitais provinciais.
 
Foi lançada uma campanha de combate à mendicidade e do fenómeno da criança da rua. Numa primeira fase, serão realizados trabalhos de sensibilização nos principais centros de concentração deste grupo de pessoas, nomeadamente nas mesquitas, lojas, nos semáforos e mercados da capital.
 
Após a sensibilização, seguir-se-á a fase de implementação, na qual a Direcção da Mulher e Acção Social, a nível da cidade de Maputo, irá iniciar o processo de atribuição de “kits” de alimentos. Para tal, as pessoas interessadas (entenda-se mendigos, idosos e pessoas carenciadas) deverão dirigir- -se às direcções distritais e, na ausência destas, aos centros comunitários. Este trabalho é feito em colaboração com as líderes locais, idosos e pessoas interessadas.
 
O alvo destas acções é constituído por mendigos e pelas pessoas que dão esmola ou outro tipo de bens aos mesmos. Em 2010, segundo dados o­fciais, existiam em Maputo cerca de 360 indivíduos que se dedicavam à mendicidade, o que contrasta com a realidade visível no terreno.
 
Combate à mendicidade: uma batalha longe de ser ultrapassada no país
 
O Governo, através do Ministério Da Mulher e da Acção Social, aposta na disseminação de mensagens às populações das cidades capitais como principal medida para reduzir o índice de mendicidade que aumenta, tendo como público- -alvo as crianças e pessoas da terceira idade. Porém, a medida ainda não está a produzir resultados encorajadores.
 
O chefe de repartição do Gabinete da Pessoa Idosa, no Ministério Da Mulher e da Acção Social, Félix Matusse, disse que este problema preocupa em grande medida o Governo, razão pela qual foram tomadas medidas de desencorajamento da sociedade na atribuição de esmolas aos mendigos no ano passado, e implementadas acções de mitigação baseadas no processo de reintegração das pessoas no ambiente familiar, facto que permitiu que o número de indivíduos que vive de esmola reduzisse substancialmente.
 
Apesar disso, Matusse reconhece que há ainda muito trabalho por fazer, porque grande parte das pessoas que se dedica à mendicidade tem parentes e vê naquela prática um caminho mais fácil para conseguir dinheiro, sendo que o mais agravante é que a sua maioria dispõe de fontes de rendimento e capacidade para trabalhar e ganhar o seu sustento.
 
Neste momento, decorre a identificação de pessoas que não têm fontes de renda e nem família com condições financeiras, de modo que se accionem mecanismos de apoio através do programa social básico virado essencialmente para os indivíduos carenciados.
 
“A mendicidade não deve ser vista como um problema do Governo. Todos nós, as autoridades comunitárias, famílias, entre outros intervenientes da sociedade, somos chamados a dar o nosso contributo, de modo a identificar de forma conjunta acções que possam reduzir esta prática nas cidades moçambicanas. Se assim acontecer, teremos uma sociedade para todos", remata Félix Matusse.
 

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