quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

MALI, O REINO DA TRANQUILA INSTABILIDADE




Rui Peralta, Luanda

I - A intervenção francesa no Mali é reveladora da forma como o neocolonialismo considera os assuntos internos do continente africano. Para os franceses, África é o zoo afro-francófono, para os ingleses os anexos da Rainha e para os portugueses são área mitomaníacas do V Império  Para o resto da Europa, África é sempre uma coisa (para os reis de Espanha serve para caçar e para outros europeus serve para mostrar as sua boas intenções solidárias e caridosas, a sua formação ecológica como amigos dos animais selvagens e para outros, ainda, é a terra dos pretos).

África está para a Europa, assim como o Sul do Continente americano está para os USA: o quintal a sul das fronteiras. É nesse sentido que os franceses estabelecem a sua força de intervenção no Mali (curioso como os socialistas franceses sempre foram simpatizantes do general De Gaulle no que respeita a África), bombardeiam, tomam partido, ordenam á CEDAO o que fazer e mandam calar os que na União Africana (organismo virtual e casa de chá das elites africanas) esboçam algumas palavras murmuradas de um protesto sussurrado.

II - Os tuaregues vêm o seu projecto de independência de Azawad ser fatalmente esmagado pelo terrorismo e pelos acordos coloniais. E assistem, estupefactos, ao papel da Argélia, que habilmente manipulou os seus inimigos internos (os terroristas islâmicos), facilitando a intervenção francesa. Serão eles os tuaregues, os perdedores e não o braço da Al-Qaeda na região, que já cumpriu o seu papel de sempre: agentes irrequietos dos interesses ocidentais.

Mas não só o projecto tuaregue que é aniquilado. São as populações tuaregues, árabes e berberes que veem-se ameaçadas de extermínio, perante o desejo de vingança dos sipaios ao serviço dos franceses (o exercito maliano), que procedem de forma sanguinária a execuções sumárias nos territórios reconquistados pela França. Basta atentar aos exemplos de Tombuctu e de Gao.

O tácito acordo argelino-francês, com o objectivo de preservar a unidade maliana, fundamental para o prosseguimento dos acordos energéticos comuns, ao ser consumado, revela a realidade de um genocídio.

III - A forma como este conflito foi vendido através das notícias das agências, criou a errónea ideia de uma conflito entre o Estado do Mali e os terroristas islâmicos. Azawad, na boca dos órgãos informativos, não era mais do que um antro de terroristas da Al-Qaeda. Ignorados ficaram factos como o caráter colonial do Estado Maliano, a luta dos tuaregues, árabes e beduínos da região, contra o colonialismo francês e a luta interna contra o fascismo islâmico da Al-Qaeda. A intervenção militar francesa não é mais do que um reajustamento de conjuntura de uma intervenção ininterrupta, que marcou a História do Mali desde a sua independência, contaminando, inclusive, o seu nascimento como Estado independente. Desde 1963 que numerosas revoltas revelam um elemento fracturante, geocultural, de um país saído das máquinas de costura do colonialismo. As recentes armas líbias e o golpe de estado em Bamaco, apenas serviram para radicalizar esse longo processo de libertação. Os interesses neocoloniais (Ocidente / agentes internos / Estados da região) e o fascismo islâmico fizeram o trabalho de reconstrução da elaborada obra de alfaiate, que é o Mali, única forma de impossibilitar os objectivos do longo processo de libertação tuaregue.

Mas näo é apenas a questão tuaregue que está em jogo. Ao atribuir toda a instabilidade da região, aos actos do braço local da Al-Qaeda, ou á queda de Kadhafi, conforme pretendem os fazedores de opinião (sentados á direita, no primeiro caso e á esquerda, no segundo) que inundam os meios de comunicação, escamoteiam a realidade, uma realidade que näo pode ser interpretada por parâmetros pré-concebidos, ou pelas dicotomias politicas e ideológicas do Ocidente.

IV - A permanente pobreza, marginalização social e económica, o fascismo islâmico, o crime organizado, são consequências directas do colonialismo e do neocolonialismo. Mas também do FMI, do Banco Mundial, do neoliberalismo sob a capa do afro capitalismo imposto aos países da região através dos mecanismos da Conferencia de Washington e assinados de cruz em Lomé, acrescentando os acordos bilaterais com o papá francês. E é bom não esquecer os investimentos realizados nos últimos dez anos por Kadhafi, que permitiram às corruptas elites malianas pagar os salários da enorme máquina administrativa central e local maliana, ou que alimentaram projectos megalómanos como a compra dos cem mil hectares de terras junto ao Níger, para construção de uma enorme zona franca, a remodelação em moldes faraónicos de Bamaco, a construção de hotéis de luxo às dezenas, num período em que os baixos números de turistas baixaram ainda mais, deixando os hotéis completamente às moscas, da construção das grandes mesquitas, e dos elevadíssimos salários dos quinhentos professores das escolas corânicas (um projecto “único” do ministério da educação maliano), mas que em nada beneficiaram as populações malianas.

Os níveis de pobreza no Norte do país atingiram dimensões dignas de comparação às descrições dantescas do inferno. A revolta tuaregue näo foi mais do que um momento nesta tranquila instabilidade gerador de miséria, que reina no mosaico maliano. A movimentação islâmica que a ela sucedeu, quase em simultâneo, é um acto revelador dessa instabilidade induzida, espelhando a reacção das elites comerciais e dos bandos depredadores que sempre estiveram estabelecidos na região e das quais as burguesias neocoloniais (á imagem das coloniais, noutros tempos) se servem e utilizam a seu belo prazer e em função do arco de interesses.

V - A única solução para este mosaico é a continuação dos valores que estiveram na base do anticolonialismo: A reapropriação da soberania popular sobre os recursos, a apropriação da produção, a democratização da distribuição e o reconhecimento dos sujeitos individuais e colectivos como fonte primordial da política.

Tudo o que estiver fora deste âmbito é obra da costureira que com agulha e dedal costurou tal manta de retalhos…

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