segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O SOCIAL E O POLÍTICO (1)




Rui Peralta, Luanda

IA crise em que vivem as centrais operárias desde finais do século XX está relacionada com a implementação do neoliberalismo na nova fase da globalização, fenómeno que produziu em massa trabalhadores supérfluos e informais, o que debilitou os níveis de sindicalização e de actividade sindical mundial. Mas este factor de “acumulação flexível” (conceito de David Harvey in The Condition of Postmodernity; Basil Blackwell Ltd. 1989) não é o único factor responsável pela actual crise sindical. Existem razões mais profundas, históricas, que cruzam-se com os fenómenos contemporâneos que originaram a acumulação flexível e que nesse cruzar de fenómenos que atravessam as dinâmicas das sociedades, revelam-se funestos.

É este o caso do paradigma da divisão entre “braço político” e “braço sindical” iniciado pela social-democracia em finais do século XIX e que permaneceu nos partidos operários, fossem reformistas, socialistas ou comunistas, até a actualidade. O preço desta divisão sindicato / partido foi regido pela aceitação da actividade parlamentar como o único âmbito, ou o principal campo de batalha entre trabalho e capital. Esta divisão artificial entre o político e o sindical criou a ilusão de que o “braço político” poderia representar, na sua acção legislativa, os interesses dos trabalhadores, organizados em sindicatos, o “braço sindical”.

O resultado final foi que o “braço político” subordinou os interesses do “braço sindical” ao parlamento, ou seja, submeteu os interesses dos trabalhadores á mecânica das instituições políticas do capitalismo e criou na consciência proletária factores alienígenas á sua cultura política, como a representação (que existiam nas assembleias proletárias, mas como factor operacional, sendo os representantes proletários nas negociações com o patronato, sujeitos a um apertado controlo e com mandatos temporalmente reduzidos) e a democracia (que na cultura politica proletária existia não como regime, mas como procedimento). Desta forma passaram as organizações proletárias a serem submetidas á estratégia do capital e aos Jogos Capitalistas (sobre este ponto ler o excelente trabalho de István Mészáros, Para Além do Capital).

IIEste paradigma em nenhum momento projectou o “braço político” como impulsionador da luta proletária. Pelo contrário. O seu papel limitou-se a manter as revindicações sociais dentro dos limites do regime, de forma a nunca por em risco a acumulação de Capital. Foram assim amputados os interesses do proletariado e confinada aos sindicatos as lutas reivindicativas. Desta forma os representantes parlamentares do proletariado impuseram aos seus representados a imposição vital do Capital: a inadmissibilidade de numa sociedade democrática a existência de qualquer actividade social que tivesse objectivos políticos.

As organizações revolucionárias do século XX aceitaram, sem excepção, este modelo, limitando-se algumas delas a criticarem o reformismo sindical ou o cretinismo parlamentar, mas não compreendendo que ambas eram consequência da divisão sindicatos / partidos, agora apenas dois vértices de um triângulo que se complementava com o parlamento, o triângulo funcional do capitalismo. Foram assim os proletários domesticados e nas suas acções näo iam além das reivindicações circunstanciais, que não colocavam em causa a dominação do capital, circunscrevendo a actividade das suas organizações ao parlamento e á aceitação das instituições burguesas e às regras do jogo.

IIINa democracia contemporânea (alguns chamam-na democracia burguesa, esquecendo-se de que a democracia é a única forma natural da sociedade capitalista e da cultura politica burguesa, por isso a falência do socialismo real) o Capital é a única força extra – parlamentar, que não pode ser politicamente limitada, pois o Capital é a única força responsável pelo controlo social e pelo metabolismo do capitalismo, razão pela qual a única forma de representação política compatível com o seu metabolismo é aquela que nega a possibilidade de contestar o poder material do Capital.

Ao ser a única força extra – parlamentar aceite, o Capital não teme as reformas decretadas no interior da sua estrutura politica. O parlamento como último vértice do triângulo funcional do sistema é o cenário de batalha mais inócuo, na guerra de classes. É como deixar o inimigo escolher o campo de batalha, ficar com as melhores colinas e com o melhor terreno. Esta situação agrava-se no actual momento, em que o Capital não tem condições de conceder (bem pelo contrário, necessita de cortá-los) benefícios mínimos, direitos, liberdades e garantias, á classe oposta.

O poder extra – parlamentar do Capital só pode ser enfrentado pela força da acção proletária, naturalmente extra – parlamentar na sua essência. A destruição do domínio social do Capital implicará o domínio social do Proletariado, pois ambos são as únicas forças de domínios social, as únicas que actuam no domínio das superestruturas culturais e as únicas que säo simultaneamente sociais e politicas, logo, extra – parlamentares.

De um lado o Capital e o regime democrático, do outro o Proletariado e o procedimento democrático. De uma lado a manutenção da estrutura parlamentar baseada na negociação (o espelho das assembleias de accionistas das empresas) do outro a destruição do aparelho e a estrutura de assembleia, colocando o Estado apenas como instrumento funcional provisório de domínio e criando as estruturas de uma nova praxis politica.

IVDe todas as temáticas da tradição proletária, é nas relações partidos / sindicatos / parlamento que a interacção entre sujeito social sujeito político tem maior realce, na perspectiva do conceito de social e politico na nova cultura politica. Mas esta imposição entre social e politico é levantada a partir de que lógica?

Quando Hegel definiu a liberdade como consciência da necessidade, estava também a afirmar que a política surge e inventa-se no social. Foi nas lutas contra a opressão que a consciência da necessidade foi formulada e com ela a enunciação de novas liberdades e formas de conquistá-las. A consciência politica proletária não nasceu nas cúpulas das organizações que se sentavam no lado esquerdo dos hemiciclos parlamentares, nem na cabeça dos autoproclamados grandes lideres (outro factor alienígena á cultura proletária, o de liderança), mas sim na praxis social. A política não é um produto da elucubração distanciada da realidade, mas sim fruto da acção dos homens na transformação dessa mesma realidade.

Na democracia a existência do Estado como instituição que representa a garantia do interesse geral, o que coloca o Estado como o Publico (Do Estado sou Eu, dos reis absolutistas, passou-se ao Estado somos Nós, do regime democrático), gerou a ilusão (gerada por outra ilusão, a do interesse geral) de que existe uma relação de forças particular. Uma linguagem do conflito, onde os antagonismos sociais se manifestam num jogo de alianças e contenção, de oposições e de acordos. Para muitos, a luta de classes é ali expressa na forma de luta política entre partidos.

Essa forma mediada da luta política entre partidos, que muitos veem como a forma como a luta de classes se comporta na esfera politica democrática é näo mais do que a forma como o Capital encena o questionamento ao seu domínio e rejuvenesce politicamente. Aceitar esta ilusão do interesse geral, do Estado democrático de Direito, da sociedade pluralista, da democracia, é participar neste rejuvenescimento das estruturas políticas do capital. O capitalismo é caracterizado pela sua grande mobilidade orgânica, no sentido vertical e horizontal. As elites circulam e quanto mais rapidamente circularem, mais rapidamente se desenvolvem os novos ciclos de capital. Aceitar o cenário democrático é participar neste aleatório e alienatório jogo de interesses, representado nas dicotomias governo / oposição e esquerda / direita, figuras retiradas daquela que é a esfera real de movimentação do capitalismo, a económica (a esta dicotomias politicas ilusórias, correspondem as dicotomias reais económicas do sucesso / insucesso, inovação / decadência, ou lucro versus falência).

VPodemos hoje verificar, como os Estados criminalizam os protestos sociais (a repressão efectuada na Europa ao movimento estudantil e novas formas de ocupação de ruas, ou á criminalização das lutas pelas terras e pela reforma agrária, nas periferias latino americanas, africanas e asiáticas e mesmo no centro do capitalismo BRICS, como o caso do Brasil, da Índia e da África do Sul), a forma como assassinam camponeses (América Latina, Ásia e África), como rotulam os proletários como terroristas (Índia e Colômbia, por exemplo, embora possamos recorrer á História recente e reanalisar os fenómenos da Alemanha e Japão, com a Facão do Exercito Vermelho, ou na Itália, como as Brigadas Vermelhas, sem esquecer os Panteras Negras nos USA, ou as formas de luta do proletariado palestiniano, substancialmente diferentes da forma de condução da luta de libertação nacional pelas burguesias árabes), enquanto em paralelo descriminam formas de corrupção financeira e económica (veja-se a vergonha da exportação de capitais, com especial incidência em África) e o nepotismo, que surge com cada vez maior naturalidade á escala mundial (praticado á direita e á esquerda).

Este longo processo de criminalização e descriminalização, praticados pelos globais estado de direito, é consequência do processo em curso de movimentação dos centros financeiros e de redefinição das periferias, uma fase complexa do metabolismo capitalista, da sua mobilidade e flexibilidade, da sua renovação permanente e do seu mecanismo de reengenharia á escala global. A complexidade destas fases é enorme, global e pluridimensional. Novas fronteiras são traçadas, grupos sociais são proletarizados, elites ascendem e grupos de poder desaparecem, Os contractos sociais säo revistos, as constituições refeitas, a formalidade do Direito é levada ao extremo e a realidade jurídica passa a assentar, á falta de melhor e até á estabilização do processo, no contracto imposto pelas nova realidades económicas.

VINo campo proletário surge um novo sujeito social-politico, que toma consciência das novas realidades do campo de batalha, que redimensiona as suas necessidades e as articula, não segundo o eixo da divisão do social e do político, mas de outra forma, onde o social e o político tornam-se um só, näo pelo redimensionamento do social, mas pela redefinição do político. Pela primeira vez em mais de um seculo é compreendida a dimensão extraparlamentar do Capital, pela sua força adversaria, o proletariado e pela primeira vez, no mesmo período de tempo, este assume consciência de que, para alem do Capital, é a única força com a mesma dimensão extra – parlamentar.

Ao readquirir esta compreensão o proletariado está a levar a cabo uma imensa revolução cultural que o liberta dos conceitos alienígenas de democracia e representatividade, que o aprisionam no contexto parlamentar. Claro que estes conceitos não são ainda assumidos em toda a sua plenitude, mas a experiencia que está em curso através de movimentos como os Ocupas, a Revolução Cidadã no Equador, o processo bolivariano na Venezuela, a nova Bolívia, os Sem Terra no Brasil, a insurreição da cintura florestal na India, a longa experiencia da luta armada e de outras formas de luta na Colômbia, os novos cibermovimentos, as novas culturas alternativas, as movimentações dos povos indígenas na América Latina e na Asia, o momento de radicalização vivida na luta de classes na Africa do Sul, os movimentos eco-alternativos, a continuidade da Revolução Cubana, agora em fase de livrar-se do seu empecilho burocrático e assumir de uma forma popular a sua identidade socialista, enfim a actual pluridimensionalidade de organizações, estratégias, formas de luta, reivindicações, protestos, processos revolucionários em curso, é uma consequência da reapropriação da consciência da nova cultura politica, onde a divisão social / politico é inexistente.

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