Paulo Kliass, São
Paulo – Opera Mundi
Sem otimismo
ingênuo, eleição de Azevêdo foi uma vitória, mas diplomata não defenderá
interesses dos brasileiros
Sim! Pode-se
afirmar com relativo grau de segurança que os resultados da recente eleição
para o cargo de diretor geral da OMC (Organização Mundial do Comércio) são o
reflexo de uma importante mudança que está em movimento no interior dessa
instituição multilateral do sistema das Nações Unidas. Afinal, foi a primeira
vez que um candidato de um país externo ao grupo apoiado pelos países europeus
obteve a maioria de votos.
A performance da campanha em prol de Roberto Azevêdo, embaixador brasileiro de
carreira, com larga experiência de atuação no âmbito da própria OMC, tem um
sabor especial de vitória para a diplomacia de nosso país. Afinal, ele terminou
por receber os votos necessários para se eleger, ao longo do complexo processo
de decisão daquela instituição.
Na reta de chegada, disputou com outro candidato latino-americano e conseguiu a
aprovação definitiva. Herminio Blanco, da diplomacia mexicana, apesar do apoio
recebido dos Estados Unidos e dos países da União Europeia, não obteve êxito
contra o brasileiro. Sua identificação com o processo do Nafta (sigla em inglês
do Acordo de Livre Comércio da América do Norte) e sua relação de subserviência
à política externa norte-americana com toda certeza tornaram inviável qualquer
tentativa de simulação de uma suposta independência de seus interesses.
Assim, esse evento vem se somar à indicação de outro brasileiro, José Graziano
da Silva, ocorrida no ano passado, para comandar a FAO (Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura). A estratégia encaminhada pelo Itamaraty
parece estar colhendo alguns bons resultados para o Brasil na conquista de
espaços estratégicos no seio das organizações multilaterais. A guinada
estratégica de nossa política externa, operada a partir do primeiro mandato de
Lula em 2003, rompeu com a lógica do alinhamento automático aos Estados Unidos,
abrindo caminhos de consolidação do bloco regional (Mercosul e América Latina)
e de busca de parcerias no chamada “eixo sul-sul” (África e Ásia).
Desejo de renovação
Na verdade, na OMC ocorreu uma polarização entre o candidato apoiado pelos
países mais ricos e aquele que se identificava como o preferido pelo conjunto
de países que guardavam alguma diferença mais séria com o outro bloco. No
entanto, o jogo de alianças da geopolítica é muito mais complexo do que se pode
imaginar à primeira vista. Os exemplos são muitos. A China apoiou o Brasil
nessa eleição, mas temos com esse país um potencial futuro de muitas disputas
no campo das trocas comerciais. O Paraguai, apesar da identificação regional
com o Mercosul, votou contra Azevedo em função da discordância do novo governo
local quanto ao apoio de nossa diplomacia ao ex-presidente deposto, Fernando
Lugo.
O fato
inquestionável é que o resultado final revela uma fotografia bastante adequada
do processo de insatisfação da maioria dos 159 membros da organização quanto ao
rumo que a direção da mesma vinha imprimindo à agenda multilateral do comércio
internacional até o presente momento. Não é por acaso que dois representantes
de países do mundo em desenvolvimento tenham chegado à disputa final. Ainda que
o candidato derrotado contasse com o apoio explícito dos países mais ricos do
planeta, não deixava de ser significativo que fosse natural, ele também, de uma
nação da América Latina.
Limites na ação do diretor-geral
Porém, é importante que esse resultado não seja recebido com um otimismo
ingênuo. Não há espaço para se trabalhar com a possibilidade de melhoria imediata
da ação brasileira no domínio das relações econômicas internacionais. O
“timing” do jogo e das articulações da diplomacia é completamente diferente do
tempo da política interna dos países. As agendas em debate e de implementação
pela OMC obedecem a um ritmo bastante lento, uma vez que os interesses
econômicos e geopolíticos envolvidos são enormes.
Desde os tempos de vigência apenas do GATT (sigla em inglês do Acordo Geral de
Tarifas e Comércio), em 1947, até a fase posterior à constituição formal da
organização em 1995 (a partir da recomendação da Rodada Uruguai, ocorrida entre
1986 e 1994), os avanços foram bastante vagarosos. Aliás, o que é perfeitamente
compreensível, em se tratando de movimentos complexos e contraditórios no jogo
de interesses econômicos conflitantes no cenário internacional. Os grandes
temas são lançados em processos de ampla consulta junto aos países membros, as
chamadas rodadas. E como não há mecanismo de imposição possível, o que se busca
sempre é o consenso mais amplo possível, quando não a unanimidade.
Por outro lado, não custa relembrar que Roberto Azevêdo não foi indicado para
defender os interesses brasileiros. E esse ponto precisa ficar bastante claro,
ao contrário do que deixam transparecer alguns artigos nos grandes meios de
comunicação. É óbvio que sua presença nos é mais conveniente do que qualquer
outro secretário-geral, mas não devem caber ilusões nesse jogo pesado das
nações. A margem de manobra do ocupante do posto máximo é bastante exígua e o
mesmo é obrigado a seguir de perto o sentido e as sutilezas da correlação de
forças entre os países a cada instante. Assim, por exemplo, é impossível evitar que as conjunturas de crises de
natureza econômica e financeira na esfera global - como a atual, por exemplo –
contribuam para retrocessos em termos das pautas de liberalização comercial no
campo dos países desenvolvidos. Ou, então por outro ângulo, é inevitável que as
questões envolvendo as reclamações e os pleitos da maioria dos países contra as
práticas comerciais agressivas patrocinadas pela China venham à tona no
horizonte próximo.
Atribuições da OMC e a lentidão dos processos
As atribuições delegadas à OMC limitam-se à defesa de determinados princípios
de prática de comércio internacional. Isso está na base da sua própria criação,
uma vez que foi constatado que não bastava anunciar por todos os cantos a
defesa da liberdade de exportar e importar. Ficou claro que os países sempre
teriam algum mecanismo para burlar esse quadro e defender seus próprios
interesses nacionais em primeiro lugar.
Assim, caberia à ONU criar um sistema específico contra o protecionismo, com
instrumentos de pressão e constrangimento aos países que não respeitem as
regras previstas nos acordos. E aqui entram temas bastante delicados, tais
como: i) barreiras fitossanitárias; ii) compras governamentais; iii) cotas para
produtos importados; iv) subsídios implícitos ou explícitos à produção
nacional; v) impostos sobre produtos importados; vi) prática de “dumping”,
entre outros. Para uns, defesa legítima de interesses soberanos. Para outros,
meras desculpas para justificar práticas protecionistas.
Como se pode imaginar, os procedimentos para averiguar e confirmar tais
políticas consideradas como “protecionismo comercial” são muito sutis e
demorados. Os processos formais são caros e as instâncias de deliberação no
interior da OMC dependem de etapas protocolares, com espaço para acusação e
defesa das partes envolvidas, levando a decisões que podem levar décadas até a
sentença final. E que podem contar ou não com a concordância ou boa vontade por
parte do país “condenado”.
Foi o caso, por exemplo, das ações brasileiras contra as práticas
protecionistas dos Estados Unidos no caso das nossas exportações de suco de
laranja ou de algodão. Semelhante foi o processo contra as barreiras
alfandegária da União Europeia contra as nossas exportações de açúcar. Ou então
do questionamento da maioria dos países do chamado Terceiro Mundo quanto aos
mecanismos de subsídio concedidos pelos países europeus às respectivas
atividades agrícolas.
Retomar a Rodada de Doha
A agenda da OMC está praticamente paralisada com a chamada Rodada de Doha
(iniciada em 2001 e ainda não concluída), quando os países do mundo em
desenvolvimento tentavam impor elementos de uma pauta de trocas internacionais
que incorporasse também os aspectos das desigualdades e disparidades regionais.
Os países ricos, por seu turno, propunham a ampliação da liberalização
comercial também para o setor de serviços, estratégia que seria prejudicial
para a maioria dos países mais pobres.
Ou seja, trata-se de jogo de difícil solução e conclusão. Essa contradição
estava na base dos poucos avanços obtidos desde o início. Além disso, à natural
e compreensível resistência dos países desenvolvidos somou-se a emergência da
crise econômica e financeira internacional. As portas se fecharam a qualquer
tipo de diálogo, em razão dos problemas domésticos que se aprofundaram.
Destravar os impasses da negociação parece ser o grande desafio que se coloca
para a OMC nos próximos tempos. À medida que começam a surgir os primeiros
sinais de recuperação da atividade econômica nos países ricos, abre-se espaço
para que os temas da Doha voltem à mesa de negociação. Em tese, esse deve ser
um dos primeiros pontos com que Azevêdo deverá se defrontar ao longo de sua
gestão, como ele mesmo já adiantava em sua página de candidato na internet.
No entanto, apenas retomar a agenda atualmente bloqueada não é suficiente. A
grande dificuldade continua sendo a busca dos pontos de consenso entre países
com interesses tão díspares nas trocas internacionais. A começar pela própria
China, que teve seu peso sensivelmente elevado no comércio mundial ao longo dos
últimos anos e não deverá aceitar tão facilmente as propostas de revisão de
suas práticas comerciais agressivas e lesivas à maior parte de seus parceiros,
dentre eles o próprio Brasil.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental,
carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Texto publicado originalmente em Carta
Maior.
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