Daniel Oliveira – Expresso, opinião
Quando Angola
conquistou a independência, acho que a maioria dos portugueses, que conhecia
pela primeira vez a liberdade, celebrou (ou pelo menos reconheceu) esse seu
direito. E os que, como eu, são convictamente anticolonialistas nem sequer
aceitam a ideia generalizada de que "fizemos mal a descolonização".
Porque a frase vive, ela própria, de um preconceito colonial: a de que a
descolonização é, antes de tudo, um gesto do colonizador e não do colonizado.
De que a forma e o tempo dessa descolonização dependia sobretudo de Portugal e
não da própria vontade dos angolanos. Pode ser discutido o processo de
transição, gerido por um Estado a descobrir a democracia e, ele próprio, a
viver um vazio de poder. Mas num cenário de luta pelo poder em Angola e de
revolução em Portugal, não vejo como podiam as coisas correr melhor. Se a
descolonização de Angola e restantes colónias portuguesas teve algum problema
que não tivesse existido em quase todos os processos semelhantes foi o de ter
vindo tarde demais.
Estes assuntos
ainda são difíceis de tratar em Portugal. Por feridas políticas, mas também
humanas. A dos que vieram de África (muitos nascidos nas ex-colónias), com a
vida de novo a zeros, e as de ex-combatentes (que foram contra ou a favor da
guerra). A história não se faz só de ideias. Faz-se de biografias pessoais.
Imagino que o colonialismo português e a guerra civil que se seguiu à
independência também seja assunto que agite muitas emoções em Angola. É por
isso que quase tudo o que tenha a ver com as relações entre Angola e Portugal
causa debates acalorados e acusações carregadas de ressentimentos.
Por isso, antes
desta conversa, é preciso que não haja confusão: sou anticolonialista por
convicção. Contra toda a espécie de colonialismos, novos e velhos, por via das
armas ou do dinheiro. E de mim nunca alguém ouvirá derivações das patranhas
luso-tropicalistas. Os portugueses foram tão criminosos na sua colonização como
todos os impérios coloniais. Foram e são tão racistas como todos os povos podem
ser. E também não sou dos que acham que os angolanos estão hoje pior do que
estavam quando viviam sob o jugo colonial. Pelo contrário. Por mais injusta que
seja na distribuição da sua riqueza, nunca Angola teria crescido como cresceu
se, por absurdo, ainda fosse uma colónia portuguesa.
Resolvida a
primeira acusação que, por oportunismo e falta de argumentos, é feita pelos
apoiantes do governo de José Eduardo dos Santos aos portugueses que o
critiquem, vou à segunda: não tenho nem alguma vez tive qualquer simpatia pela
UNITA. Pelo contrário, sempre lhe devotei um razoável desprezo. Como só posso
ter por quem colaborou ativamente com o regime do Apartheid e com a ditadura
portuguesa e por quem pouco ou nada fez pela independência de Angola durante a
guerra colonial. Considerava Jonas Savimbi um homem pouco recomendável e apenas
o defendi quando foi assassinado e exibido ao mundo de forma cobarde e indigna.
Também não faço retratos idílicos do passado do MPLA e muito menos do seu líder
histórico, Agostinho Neto, que permitam dizer que a realidade de hoje resulta
de uma degenerescência recente deste movimento político. A vergonhosa memória
do dia 27 de maio de 1977 chegaria para que tal discurso fosse hipócrita. No
entanto, sei que não há guerras civis e lutas armadas pelo poder sem crimes.
Por isso, para não mexer em mais feridas, limito-me, sem ingenuidades, a
colocar tudo isto na perspetiva da história. A guerra civil, as purgas, mas
também o passado colonial português e o processo de descolonização. Resumindo:
não estou ao serviço de nenhuma força revanchista, seja ela portuguesa ou
angolana.
Esclarecido tudo
isto, passo à triste novela que culminou num inaceitável pedido de desculpas do
ministro dos Negócios Estrangeiros e na ameaça de José Eduardo dos Santos a
Portugal, provando que quanto mais nos baixamos mais mostramos o que não
queremos. O Ministério Público iniciou uma investigação a vários altos
dirigentes políticos e económicos (é quase o mesmo) angolanos. Apesar de alguns
serem conhecidos por um enriquecimento que nem os cargos públicos que ocupam,
nem fortunas de família podem explicar, e que muitos dos seus negócios passam
por Portugal, ninguém sabe se estas investigações têm ou não fundamento. Isso,
apenas aos magistrados responsáveis por este processo diz respeito. O governo
português não tem de pedir desculpas por ter um sistema judicial independente e
por nada poder fazer para o travar. Os portugueses têm de se orgulhar disso e o
governo não tem de abrir a boca sobre assuntos que não lhe dizem respeito.
Muito menos publicamente. Muito menos para pedir desculpas.
Que não se enganem
os angolanos: a razão porque o governo português pede desculpa nada tem a ver
com respeito por eles ou pelo seu governo. É pura necessidade. Há um Portugal
que precisa do dinheiro dos angolanos, que quer agradar ao seu ditador e aos
que roubam o seu povo. Mas a verdade é que a maioria dos portugueses não vê um
cêntimo do dinheiro do BIC ou do BES, do BPI, da GALP ou da ZON, que unem o
Grupo Empresarial MPLA e o Grupo Empresarial Bloco Central. A minha vida não
melhorou com os investimentos angolanos em Portugal, a da maioria dos angolanos
não melhorou com os investimentos portugueses em Angola. A elite angolana
limita-se a lavar dinheiro em Portugal, a comprar o silêncio cúmplice das nossas
elites e a entrar na Europa pela porta dos fundos. E a elite portuguesa
limita-se a tentar sacar uns trocos do pornográfico saque aos angolanos.
Da mesma forma que,
no passado, alguns portugueses ignoraram os supostos interesses de Portugal em
Angola em nome do direito à autodeterminação dos angolanos, pouco me interessam
os supostos interesses de Portugal em Angola quando estão em causa valores
fundamentais. Da mesma forma que os angolanos não aceitaram que a superioridade
económica e militar dos portugueses esmagasse a sua vontade de viver num país
independente, não podemos aceitar que a atual superioridade económica de Angola
e do seu governo ponha em causa a nossa liberdade de imprensa e de expressão, a
independência da nossa justiça e, acima de tudo, a nossa dignidade. Podem os
escribas sabujos ao serviço da elite política angolana (alguns deles
mercenários portugueses) vibrar com a nossa atual desgraça e vê-la como uma
vingança histórica. Também os saudosistas do Estado Novo viram na guerra civil
angolana a prova de que os angolanos nunca se saberiam governar sem nós. É a
mesma mesquinhez ressabiada. Sou e serei solidário com os angolanos em todas as
horas difíceis. E sei que os angolanos de bem também o são connosco, neste
momento trágico que vivemos. Mas isso não nos impede, nunca nos poderá impedir,
de falar do governo de Angola com a mesma frontalidade com que falamos do
nosso. Não há ameaça velada de José Eduardo dos Santos (que quer comprar o
silêncio de todos os portugueses através da chantagem, num tempo de
necessidade), não há risco para os emigrantes portugueses em Angola, não há
dinheiro de Isabel dos Santos, não há compras de grupos de comunicação social
feitas por testas de ferro do governo de Luanda que possam travar o espírito
livre de quem dá valor às suas convicções.
Sabendo do que
sofreram os que lutaram pela independência de Angola, seria um insulto que
deixássemos que uma postura colonial ao contrário passasse a marcar as relações
entre os dois países. Se não quero ser colono, não quero seguramente ser
colonizado. Se a parceria estratégica com Angola passa pelo silenciamento, em
Portugal, das vozes incómodas para o presidente José Eduardo dos Santos, acho
excelente que ela seja imediatamente enterrada. Em 1974 livrámo-nos de Marcelo Caetano.
Dispensamos receber ordens do seu congénere angolano.
Bem sei que o meu
governo, que quase todos os partidos do meu país, que os empresários e que até
muitos intelectuais e jornalistas portugueses se comportam de uma forma
indigna, rastejando aos pés de José Eduardo dos Santos por uns trocados. Por
umas empreitadas, umas parcerias, umas encomendas, umas compras, umas vendas,
uns investimentos, uns financiamentos. Como não tenho nem quero ter negócios em
Angola, para mim tudo está como estava. Com ou sem parceria estratégica, José
Eduardo dos Santos é um dos mais refinados ladrões que África e o Mundo
conhecem. E só terei orgulho em ser português enquanto puder escrever esta
evidência livremente. E enquanto puder continuar a ser solidário com os que, em
Angola, lutam pela democracia, pela justiça social e pela decência ética,
arriscando a sua liberdade e a sua vida. Porque a parceria estratégica que me
interessa é, antes de tudo, entre povos. Os negócios, sendo importantes, vêm
depois. E sei que virá o dia em que Angola será uma democracia madura. E virá o
dia que Portugal terá resgatado a sua dignidade. Quando as duas coisas
acontecerem, os dois Estados terão as parcerias que os seus povos merecem.
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