Martinho Júnior, Luanda
I - A cidade do Cuito, capital da
Província do Bié, é com esse estatuto a cidade mais próxima do centro
geográfico de Angola, que coincide com a matriz das grandes nascentes
hidrográficas do país.
Durante a guerra que surgiu em sequela da luta contra o “apartheid”, a guerra
que se internacionalizou e se encadeou com o descalabro da região central de
África (“Iª Guerra Mundial Africana”), por que Savimbi entendeu participar
recorrendo à rebelião armada na tentativa da conquista do poder em Angola pela
via da “guerra dos diamantes de sangue”, a cidade do Cuito em 1992 foi palco,
conjuntamente com as cidades do Huambo e de Malange, dos mais encarniçados
combates.
Esse período foi para alguns conhecido como a “guerra das cidades”, mas resultava
da aplicação dos conceitos de Mao Tse Tung sobre a guerra revolucionária, que
Savimbi aprendeu nas academias chinesas para depois à sua maneira vir aplicar
em Angola: “realizar o cerco às cidades a partir do campo, para depois
tomá-las”, um projecto que teria de começar pelas capitais provinciais, a fim
de, por último, chegar à capital e tomar o poder pela via armada.
O assédio ao Cuito tornou-se mais fácil a Savimbi por várias razões e entre
elas destaco a fragilização da posição governamental em função dos Acordos que
haviam sido assinados primeiro em Bicesse, fez já 20 anos e depois em Lusaka.
O Governo havia não só desmobilizado enormes efectivos das FAPLA que foram
entretanto extintas, mas no Bié desmobilizou por tabela as Forças Especiais da
Segurança do Estado, Ministério que acabaria também por ser extinto.
As Forças Especiais acabaram por desempenhar entre 1976 e 1990 um papel
contributivo muito forte no reforço geo estratégico na luta contra o
“apartheid” e contra as sequelas do colonialismo e “apartheid”.
Em 1977 era Governador Provincial do Bié Faustino Muteka (na actualidade
Governador do Huambo) e o movimento de libertação havia decidido com coerência
geo estratégica criar as Forças Especiais no Bié, às ordens do Presidente
Agostinho Neto e articulando a Defesa e a DISA, para procurar conseguir
supremacia no planalto central e fazer face às incursões impulsionadas pelo
regime do “apartheid”, manobra que da parte da África do Sul integrava
tacitamente os efectivos dum Savimbi que entretanto a administração republicana
de Ronald Reagan havia considerado de “freedom fighter” (tal como fizera com os
“contras” na Nicarágua e com Bin Laden no Afeganistão).
O Presidente Agostinho Neto, tendo em conta o cenário da luta contra o
“apartheid”, aplicou a favor do Estado Angolano a receita similar à que o
colonialismo português havia aplicado ao MPLA no Leste, quando pela via da
“Operação Madeira” atraiu Savimbi à sua órbita, de forma a que suas forças
servissem de “almofada amortecedora” contra a tentativa de progressão do
movimento de libertação em direcção ao planalto central; desta feita, as Forças
Especiais desempenhavam papel análogo na luta contra o “apartheid”, servindo de
“almofada amortecedora” contra as SADF coligadas a Savimbi, desejosos de
reverter a seu favor as estratégias no planalto central.
As Forças Especiais, conjuntamente com as FAPLA e a ODP (Organização de Defesa
Popular) garantiam, numa região decisiva para o todo nacional, o exercício da
soberania e a “última fronteira” em direcção a norte por parte das incursões
militares, de inteligência e de reconhecimento dos racistas sul africanos
dentro do território de Angola após o insucesso da “Operação Savannah”.
Os sul africanos tentaram em vão, em estreita consonância de esforços com
Savimbi, vencer essa barreira geo estratégica, na azáfama de, a partir do
planalto central, alcançar por fim Luanda, desde a declaração de Independência
a 11 de Novembro de 1975 e Savimbi acabaria em 1992 de manter essa tentação, o
que influenciou decisivamente na sua decisão de tomada das capitais provinciais
após o “encerramento” das FAPLA e das Forças Especiais (neste caso no Bié).
Os sul africanos durante a década de oitenta chegaram mesmo a desembarcar meios
através de vários voos de seus C-130 sobre a parte sul da Reserva Integral do
Luando, a leste do curso do rio Cuanza, a fim de “catapultar” as incursões na
direcção norte.
Apesar desse desembarque de material resultar no incremento das acções de
Savimbi, os resultados foram escassos.
Em 1977 foi formado no Bié o 1º Batalhão das Forças Especiais, unidade que iria
impulsionar pouco a pouco a formação de mais Batalhões que comporiam a Brigada
e, sob orientação de Faustino Muteka, procedeu-se ao recrutamento para
completar o efectivo do Batalhão a partir dos grupos de acção e células do MPLA
em todos os Municípios e principais Comunas do Bié.
Como em todos os recrutamentos para a DISA e depois para a Segurança do Estado,
só poderiam ter acesso a essas instituições da 1ª República membros do MPLA, o
que significa que o efectivo das Forças Especiais só ingressou nelas por que
todos os recrutas eram do MPLA.
A ideia da barreira de resistência ao “apartheid” no Bié, para além das
concepções geo estratégicas, integrava componentes ideológicas que inter-agiam
com a implementação do próprio Estado Angolano: eram as ideias do movimento de
libertação em África que estavam presentes, que eram instrumento de Defesa e
Segurança do Estado em formação e continham elementos que davam consistência ao
facto de “na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul estar a continuação da
nossa luta”.
Esses conceitos ideológicos nada tinham a ver com ideologias “stalinistas”,
identificando-se com os conceitos e estratégias das revoluções na América
Latina, bem como com a luta de libertação em África, perseguindo políticas de
Não Alinhamento e de exercício sem ingerências da soberania nacional.
Desde os primeiros Acordos sobre Angola, a começar com o de Bicesse há 20 anos,
nunca os efectivos que integravam a Segurança do Estado, incluindo as Tropas
Guarda Fronteira, as Forças Especiais, ou as Unidades de Luta Contra Bandidos,
foram tidos nem achados.
As componentes militares presentes nos Acordos do lado Governamental não
integravam agendas relativas aos elementos provenientes da Segurança, muito
menos discutiram o que quer que fosse relacionado com esses milhares e milhares
de homens que acabaram por ser desactivados sem que houvesse sequer um
documento que comprovasse os seus bons serviços ao Estado Angolano…
Essa foi a primeira fronteira do Cuito e os homens da fronteira, aqueles que
defenderam a soberania em muito difíceis condições e conjunturas, são
merecedores de reconhecimento por parte de todos os angolanos.
A intensidade dos combates foi de tal ordem que os mortos eram enterrados nos
quintais e a água era conseguida com as cacimbas (poços) abertos nos mesmos
quintais.
Para comer, muitos tinham que romper as linhas que cercavam a cidade e antes da
aurora arrancar, os alimentos disponíveis nos campos circundantes, regressando
às suas trincheiras.
Apesar de terem sido desactivados sem sequer merecer um documento, sem terem
qualquer suporte e apoio, votados ao abandono, muitos elementos das Forças
Especiais participaram por sua livre vontade e iniciativa na batalha integrando
o lado governamental e foram muito importantes na resistência que o Estado
Angolano ofereceu a Savimbi no Cuito.
II - A segunda fronteira é a que se faz sentir no presente, aquela que marca o
início da reconstrução sobre as feridas e as cinzas do passado com os olhos
postos no futuro.
O Cuito foi deixado praticamente em escombros por que as linhas de contacto
entre as forças estiveram dentro da cidade, pelo que agora subsiste o desafio
de ultrapassar o passado, vencendo traumas, preconceitos e reconstruindo.
O que tive a oportunidade de constatar, é que apesar de tudo se está a superar
as expectativas no que diz respeito à recuperação de infra estruturas e
estruturas, com o equipamento administrativo e social a merecer uma atenção
prioritária.
A capital do Bié está limpa, bastante funcional, as escolas estão a abarrotar
de alunos e, apesar de ser tanto o que há a realizar na agricultura e na
indústria, há sinais de empreendimento nos mais diversos níveis sociais,
esbatendo-se os desequilíbrios humanos, que são muito mais palpáveis em Luanda.
No que diz respeito aos alimentos, uma parte dos frescos é já de produção local
(carne, hortícolas, grãos e fuba).
Impactos de outras culturas existem e tive a oportunidade num artigo anterior,
de destacar o emprego disseminado de motorizadas de baixo custo de origem
asiática no sistema preferencial de transporte de pessoas, coisa que nunca
existiu em tal escala mesmo em cidades como Benguela, onde a bicicleta foi
sempre rainha.
Estive agora numa das posições dentro do Cuito muito próximo do Palácio
Governamental, que marcaram a divisória entre as forças em combate em 1992: dum
lado está um prédio inteiramente recuperado, que ainda hoje é a maior
construção da cidade, do outro está o esqueleto dum edifício em escombros ainda
por recuperar e com evidentes marcas dos combates.
Por toda a cidade ainda há alguns edifícios por recuperar, mas têm dono que só
não se conseguiram meter em obras por que estão descapitalizados.
Ao aproximarmo-nos do décimo aniversário do Acordo de Luena, que ocorrerá no
próximo ano, a maior parte da estrutura do Cuito está recuperada, a funcionar
de forma satisfatória, com a cidade indiciando vontade de crescer e de viver.
O Caminho de Ferro de Benguela já começou a recuperar os troços dentro da
Província: o novo assentamento da linha, que será feito do Lobito à fronteira,
já entrou nas áreas do Município do Chinguar, podendo até ao final do ano
abranger os troços a leste, pelo menos até à ponte sobre o rio Cuanza.
Quando os comboios começarem a circular, um novo impulso será dado ao planalto
central do país e às comunidades ao longo da linha, com reflexos também, como é
óbvio, nas capitais Provinciais do interior, cidade do Cuito incluída.
Até 2015 a segunda fronteira estará consolidada, com particular realce para a
reconstrução e a caminho duma relativa estabilidade emocional e humana, apesar
da lógica capitalista que se impôs ao país com tantos desequilíbrios.
III - A terceira fronteira é talvez a mais complexa, mas a mais decisiva, por que
ela envolve inteiramente a componente humana, integrando questões históricas,
sócio-políticas, económicas e até psicológicas.
As próprias Forças Especiais são disso exponentes: recrutados pelo MPLA nas
horas difíceis do “parto” da Independência, sendo os primeiros em muitos
combates no âmbito da “almofada amortecedora” contra a coligação Botha-Savimbi,
heróis anónimos da batalha do Cuito, os antigos efectivos interrogam-se, por
que são reconhecidamente dos últimos a beneficiar com dignidade dos frutos da
paz possível que se ergue sobre as cinzas.
Foram muitos os que ficaram pelo caminho, a começar no seu primeiro comandante,
Leite, foram muitos os sacrifícios, mas foi esse cimento que deu consistência à
sua resistência moral, mesmo em condições tão adversas como aquelas de 1992,
quando desactivados não tinham a obrigação perante o próprio Estado que “dar o
litro” por ele.
Da boca desses efectivos, pude constatar, não há ressentimentos pelo facto de
tantos que estiveram nas trincheiras contra Angola, terem sido de há dez anos a
esta parte beneficiários desses frutos, antes deles.
Pelo contrário, eles estão satisfeitos pela paz possível, apesar da sua
“travessia no deserto” e, desse modo são a prova de que é possível estabelecer
pontes entre a vocação socialista do passado e o que se pretende no quadro do
socialismo democrático que não abdique de enquadrar o homem como prioridade.
Eles confirmam que a sua resistência que faz parte da resistência de muitos
mais, está no sentido de criar benefícios para todo o Povo Angolano e não em
benefício de grupos, por que, conforme dizia Agostinho Neto, “o mais importante
é resolver os problemas do povo”.
Para eles, socialismo, mesmo o socialismo democrático, só poderá ser realizável
se a prioridade for efectivamente o homem, geração após geração, estabelecendo
a corrente a partir do passado histórico e enfrentando as rupturas quando
houver que as enfrentar!
A construção da paz, na fronteira humana, só é exequível com a batalha das
ideias e com as acções que venham a beneficiar todo o Povo Angolano!
O patriotismo desses combatentes é inquestionável, mas a primeira barreira
surge, nesta terceira fronteira, de quem ou pretende fazer esquecer a história,
ou de quem a quer contar de acordo com seus próprios interesses ou conveniências.
Entre estes que perfilham este tipo de opções, estão desde tecnocratas de
última geração, inteiramente vocacionados às políticas de “mercado”, até a
alguns membros do próprio MPLA que sempre tiveram aversão às “linhas da frente”
e agora são os primeiros a beneficiar das conjunturas de ausência de tiros e
impregnadas com a lógica do capitalismo com políticas de “portas abertas”.
Muitas narrações aliás das batalhas que foram travadas em Angola, estão
propositadamente a esquecer do seguinte, na esteira do abandono a que foram
votados os efectivos da Segurança do Estado: foram muitas vezes oficiais que
pertenciam a essa Instituição que, pela via de reconhecimento, ou pela via da
contra inteligência, obtinham os dados indispensáveis para a actuação das FAPLA
e por isso mesmo é justo em muitos casos questionar se algumas narrações estão
de acordo ou não com o que se passou realmente.
Foi esse o exercício que eu fiz em relação ao que escrevi sobre a batalha do
Cuito Cuanavale, cuja parte inicial, a frustração de Mavinga, que resultou em
pesadas perdas humanas para Angola, suscita questões sobre as quais ainda não
há respostas.
Estas questões são tanto mais sensíveis quanto algumas correntes consideram os
efectivos da Segurança do Estado como “funcionários”, quando de facto eles
estavam, por imperativos da luta, entre os muitos que não fugiram às primeiras
linhas.
Os equilíbrios que perfazem uma paz com justiça social, uma paz socialista que
não ponha em causa a democracia, antes pelo contrário a aprofunde no sentido da
cidadania e da participação, fazem parte da resistência daqueles que não caem
na tentação do capitalismo de tendência elitista que alguns poderosos tentam
introduzir em Angola após as refregas.
Aqueles que perfilham o sentido da vida do movimento de libertação não podem
nunca esquecer que “o mais importante é resolver os problemas do povo”,
efectivamente de todo o Povo Angolano, independentemente de origem, raça,
crença, ou de filiação política – esse é o único caminho possível que dá
continuidade aos esforços dum MPLA que antes se constituiu em vanguarda e sobre
o qual recaem as responsabilidades de vencer todas as fronteiras!
A terceira fronteira é um dos principais desafios presentes e futuros para o
MPLA, restando ele demonstrar se está ou não à altura humana de enfrentar esse
desafio.
Para lá caminha, dirão alguns, mas perante riscos e desequilíbrios, perante um
foço de desigualdades que cresce imparável, os realistas confirmam: “ver para
crer como São Tomé!”
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