Como a hipocrisia
dos tratados internacionais e o declínio moral dos Estados Unidos estão
gestando risco de rearmamento atômico generalizado
Immanuel
Wallerestein – Outras Palavras - Tradução: Antonio Martins
Os Estados Unidos e
o Irã estão envoltos em negociações difíceis sobre a possível obtenção, por
Teerã, de armas nucleares. A probabilidade de estas negociações resultarem numa
fórmula aceita por ambas as partes parece relativamente baixa, porque há, em ambos
países, forças poderosas que se opõem frontalmente a um acordo e estão
trabalhando com afinco para sabotá-lo.
A visão mais comum,
nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, é de que se trata, principalmente, de
manter um país que se presume inconfiável, o Irã, distante de armas que
poderiam ser usadas para se impor diante de Israel e do mundo árabe, em geral.
Mas este não é o ponto, definitivamente. Os riscos de o Irã usar uma arma
nuclear, se chegar a possuir alguma, não são maiores que os relacionados a
cerca de dez outros países, que já têm este armamento. E a capacidade do Irã
para proteger as armas contra roubo ou sabotagem é provavelmente maior que a da
maior parte dos países.
O problema real é
outro. A tentativa de impedir o Irã de se converter numa potência nuclear é
algo como tapar uma represa com o dedo. Se se tira o dedo, há uma inundação. O
medo é que, neste caso, o planeta poderia passar de dez potências nucleares
para vinte ou trinta. Para enxergar isso claramente, é preciso voltar à
história das armas nucleares.
A história começa
na II Guerra Mundial, durante a qual os Estados Unidos e a Alemanha mantiveram
aguda competição para desenvolver uma bomba atômica e usá-la um contra o outro.
No momento da rendição alemã, nenhum obtivera êxito, mas os EUA estavam muito mais
avançados. Nesse momento, duas coisas ocorreram. Os Estados Unidos e a União
Soviética concordaram, na Conferência de Potsdam, que os soviéticos entrariam
na guerra contra o Japão três meses após a Alemanha render-se – ou seja, em 8
de agosto de 1945. E os Estados Unidos fizeram seu primeiro teste de explosão
nuclear em 16 de julho, depois do fim da guerra com a Alemanha.
Em 6 de agosto –
dois dias antes da entrada da União Soviética na guerra contra Tóquio –, os
Estados Unidos jogaram uma bomba atômica em Hiroshima. A União Soviética
cumpriu sua promessa em 8/8. Para demonstrar que não se tratava de um
acontecimento único, os EUA jogaram uma segunda bomba em Nagasaki, em 9/8.
Por que as bombas
foram lançadas? O argumento oficial diz que elas encurtaram a guerra de modo
considerável. Pode ser: não há como saber. Mas também é razoável assumir que as
bombas foram uma mensagem para a União Soviética sobre o poder norte-americano.
O timing curioso empresta credibilidade a esta hipótese.
O que aconteceu a
seguir? Devido aos compromissos de guerra, os EUA compartilharam com a
Grã-Bretanha, imediatamente, os conhecimentos técnicos sobre a bomba atômica.
Seguiu-se uma tentativa de obter um tratado internacional que banisse as armas
nucleares em todo o mundo. Ela falhou. Em 1949, a União Soviética fez sua
explosão e tornou-se a segunda potência nuclear. Em 1952, a Grã-Bretanha
explodiu uma arma, e foi a terceira.
Este velho trio de
potências, os Big Three, tentou encerrar a lista nesse ponto. Mas a
França estava determinada a manter sua reivindicação de ser grande potência, e
explodiu uma bomba em 1960. Foi seguida pelos chineses, em 1964. Depois que a
República Popular da China obteve seu assento no Conselho de Segurança da ONU,
em 1971, todos os cinco membros permanentes deste grupo tinham armas nucleares.
Mais uma vez, os
possuidores de tais artefatos tentaram limitar a lista a si mesmos. Havia,
claramente, outros dez a vinte países com programas em desenvolvimento. Com o
tempo, iriam somar-se ao clube nuclear. As cinco potências nucleares promoveram
um acordo que recebeu o nome de Tratado de Não-proliferação de Armas Nucleares
(normalmente abreviado para TNP). Ele oferecia uma troca. Os signatários
renunciariam a qualquer tentativa de desenvolver armas nucleares. Em
contrapartida, as cinco potências nucleares faziam duas promessas: a) um
esforço, de sua parte, para reduzir a quantidade de tais armas em sua posse; b)
assistência material às potências não-nucleares, para que obtivessem o
necessário para o chamado uso pacífico da energia nuclear.
Num certo nível, o
acordo foi um sucesso. Quase todos os países o assinaram e quase todos os que
haviam lançado programas atômicos concordaram em desmantelá-los. Por outro
lado, dois fatos limitaram a utilidade do TNP. Primeiro, não era possível fazer
muito em relação aos países que se recusaram a assinar o acordo, ou que
renunciaram a ele, depois de o terem firmado. Diversos países recusaram-se a
aderir e explodiram bombas mais tarde: a Índia, em 1974; Israel, provavelmente
em 1979; o Paquistão, em 1998; a Coreia do Norte, em 2008. Além disso, Israel
compartilhou seu conhecimento com um aliado, a África do Sul [dos tempos de apartheid].
E o Paquistão começou a vender conhecimento e armas para outros países.
A segunda
consequência negativa é que tornou-se, do ponto de vista técnico, extremamente
difícil assegurar-se de que o conhecimento para os usos pacíficos de energia
nuclear não pudessem ser transferidos (muito rapidamente) para a produção de
armas atômicas. A questão-chave, do ponto de vista técnico, é o uso de urânio e
plutônio enriquecidos para a construção de armas e o que foi chamado de
“tecnologia de duplo uso”. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA)
foi criada em 1957, inicialmente para difundir a capacidade dos países para
desenvolver usos pacíficos. Mas, em seguida, começou a assumir um papel
contraditório, estabelecendo salvaguardas administrativas contra o mau uso de
tais conhecimentos. Para ampliar esta ação, foi adotado, em 1993, um “protocolo
adicional”, que deu à AIEA poderes muito maiores para supervisionar o uso da
tecnologia. Ocorre que ao menos 50 países recusaram-se a assiná-lo – e tal
protocolo só compromete os países que concordaram com ele.
O declínio do poder
norte-americano reabriu o debate. Parece claro que os EUA são contra a
proliferação – mas também perderam credibilidade para bloqueá-la por meios
militares. Isso levou diversos países que haviam renunciado às armas nucleares
– seja por confiarem na retaguarda militar norte-americana em caso de
conflitos, seja por temerem a intervenção norte-americana em sua política
interna – a reconsiderar sua desistência das armas nucleares.
As recentes
declarações do primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, apontam claramente nesta
direção. Claro que haverá contágio regional. Se o Japão buscar possuir armas
atômicas, o mesmo será feito pela Coreia do Sul, Austrália e talvez até Taiwan.
Tanto o Egito quanto a Arábia Saudita estão refletindo sobre esta
possibilidade, assim como o Irã e a Turquia. O Brasil e a Argentina podem não
estar muito atrás. Mesmo na Europa, a Suécia, a Noruega e a Espanha podem
perfeitamente lançar programas nucleares, e talvez a Holanda. E antigas zonas
nucleares da União Soviética – Belarus, Ucrânia e Kazaquistão – têm
conhecimento para recomeçar.
Por isso, se não
houver acordo entre os EUA e o Irã, o dedo deixará de tapar a represa. É o que
está em jogo, nestas difíceis negociações.
Sem comentários:
Enviar um comentário