sexta-feira, 25 de julho de 2014

A MÃE (1)



Rui Peralta, Luanda

I - Todas as espécies de hominídeos com mais de 2 milhões de anos são africanas (e especificamente subsaarianas). Não há australopitecos fora do continente africano e dos 17 tipos de hominídeos conhecidos, 12 são africanos (os restantes são da Europa e da Ásia). A corrente migratória mais antiga - de que há conhecimento - ocorreu aproximadamente a 1 milhão e 500 mil anos atrás e partiu de África em direcção á Europa e á Ásia. Outro grande fluxo ocorreu á 100 mil anos, tendo África como ponto de partida e dirigindo-se em múltiplas direcções, para a Eurásia, América e Oceânia. 

A evolução hominídea foi em grande parte realizada em solo africano, sendo África o principal doador de inovação e a Europa, Ásia, América e Oceânia, os receptores. Em termos da Evolução e da Biologia evolucionista, África é um centro e os restantes continentes são periféricos. A espécie humana é, assim, portadora da africanidade. O registo fóssil no continente remonta a mais de 5 milhões de anos. O grande número de registos fossilizados no continente encontram-se, principalmente, em duas bolsas, uma na África Oriental (o vale de Rift, que se estende desde o vale Luangwo, na Zâmbia, até ao Mar Vermelho - onde se divide em duas linhas tectónicas que terminam no Vale do Jordão e no Indico, respectivamente - passando, antes de atingir o Mar Vermelho, pela Tanzânia, Quénia e Etiópia) e outra na África Austral (o Transval).

Também os dados da Biologia Molecular indicam o continente africano como o centro, sendo África o Berço, o Continente Mãe onde a Eva Africana nos pariu a todos, não apenas a nossa espécie de Homo-Sapiens, mas também todas as espécies hominídeas ancestrais.
Ou seja, somos todos africanos, todos nós Humanidade.

II - Contrastando com este facto de profundo simbolismo humanista, a História do continente revela um drama (com capítulos de tragédia no período colonial, especialmente o genocídio - holocausto - da escravatura) que prossegue no presente (apesar dos passos tímidos, manchados por um indisfarçável esforço propagandístico, camuflagem do irrealismo das suas elites).Todos os movimentos de libertação nacional do continente africano tinham os mesmos objectivos: independência nacional, modernização do Estado e a industrialização da economia. Este último factor implicava a  construção de um mercado interno e a sua respectiva protecção. Para isto utilizou-se o senso comum: a disponibilidade das matérias-primas de origem agrícola ou mineral (recursos naturais) deveria permitir a produção de energia, materiais de construção, aço, produtos químicos essenciais, existindo um mercado interno, abastecido de produtos manufacturados importados, de consumo corrente. Desta forma, pensava-se, fazendo o que os ocidentais haviam feito noutros tempos potenciava-se uma revolução industrial.

As fórmulas variavam consoante as circunstâncias (dimensões do mercado interno e recursos disponíveis) e mediante prioridades ideológicas (assentar o desenvolvimento nas industrias ligeiras ou nas industrias "pesadas", "industrializantes", racionalizadas pelo modelo soviético). De todas as formas o objectivo final era o mesmo: modernizar o tecido económico, industrializando.

A tecnologia necessária para o desenvolvimento industrial era importada, mas para a sua aquisição não era necessário que a propriedade das empresas pertencesse ao capital estrangeiro, podendo este poder investir nas empresas nacionais - púbicas ou privadas - ou emprestar capital. Aliás qualquer das opções - propriedade privada estrangeira ou financiamento público pela via do aforro nacional ou dos créditos e doações do exterior - poderia ser ajustada á estimativa dos custos.

O problema residiu nas necessidades de importação que os planos de desenvolvimento tornavam necessárias. As importações só podiam cobrir-se com as exportações tradicionais agrícolas, ou pelas exportações do sector mineiro e/ou petrolífero. A questão agravava-se porque nenhuma das estratégias seguidas regia-se pela politica de penetração no mercado mundial, não sendo asseguradas as vantagens comparativas consequentes das exportações, porque nenhuma das estratégias de desenvolvimento, implementadas no continente africano eram orientadas para as exportações, sendo estas apenas um meio para financiar as importações. A prioridade era o mercado interno e foi este pressuposto que permitiu a instalação do aparelho neocolonial nos circuitos económicos internos. 

III - A construção do mercado interno foi, efectivamente, o eixo das estratégias  para o desenvolvimento, aplicadas pelos governos africanos. Era um pressuposto correcto, que não visava substituir as importações, mas sim que a industrialização abrisse o seu mercado especifico, enquanto se substituíam as importações anteriores. A expansão do consumo reflectiria, por acréscimo, a procura crescente de bens intermédios e de equipamento simples (que poderiam ser produzidos localmente) e a procura criada pelo gasto público corrente e trabalhos de infraestruturas.

Na fase de crescimento geral que ocorreu após a II Guerra, energia, matérias-primas minerais e produtos agrícolas eram objecto de intensa procura, o que gerava uma forte flutuação no valor das mesmas, mas insuficiente para anular, por efeito da deterioração dos preços o crescimento do valor das exportações. Este conjunto de factores tornava óbvia a opção africana (naturalmente em vantagem, porque rica nestes recursos) pela industrialização. Por outro lado a expansão dos mercados mundiais permitiu, aos países que não dispunham de vantagens baseadas nos recursos naturais, explorar a vantagem de uma mão-de-obra barata, em determinados sectores de produção manufactureira.

O projecto de modernização não se reduzia á industrialização, ou melhor, a industrialização, base da modernização, implicava infraestruturas, transportes, comunicações, educação, serviços sociais e de saúde e urbanização. Não estamos, pois, na presença de uma insólita utopia. As politicas de desenvolvimento em África eram baseadas em cálculos sólidos e no bom senso, em função da experiencia histórica (e observação do que ocorreu noutras regiões) e da conjuntura dos mercados internacionais. Estávamos, sim, perante medidas realistas. O que se passou, então, que tornou estes modelos ineficazes e obsoletos?

A resposta poderá ser encontrada no seguinte: enquanto o capitalismo susteve a integração nacional na economia mundo (e isso aconteceu até aos projectos de reconstrução após II Guerra estarem concluídos) os modelos de desenvolvimento africanos poderiam funcionar, uma vez que satisfaziam a procura externa. Tudo se alterou quando a economia-mundo passou a actuar nas periferias (como aconteceu no período compreendido entre os séculos XV a XVIII) desintegrando as sociedades.

As ideologias dos movimentos de libertação nacional não podiam prever esta evolução e quando a contradição se tornou evidente, ignoraram-na. Os diversos matizes nacionalistas encerraram-se nos processos de recuperação do atraso histórico, concebidos na concepção que visava a sua participação (logo, integração) na divisão internacional do trabalho. O resultado revelou-se dramático. Quando o crescimento foi asfixiado as elites políticas africanas dividiram-se em facções e perderam legitimidade.

O actual quadro é consequência de todo esse processo que obrigou as classes dirigentes a reposicionarem-se, assumindo novas identidades, novos discursos e novos rumos, incertos.

IV - O período 1955-1975 corresponde ao primeiro ciclo da ideologia do desenvolvimento, o "ciclo de Bandung", marcado (e inaugurado) pela Conferência de Bandung. Nestes dois decénios o conflito entre o capitalismo mundial e o projecto desenvolvimentista de Bandung foi mais ou menos intenso, conforme o estatismo e a influência da burguesia nacional (a força condutora de Bandung, essencialmente nacional burguês, mesmo nos países em que a burguesia nacional era insipida ou quase inexistente, apostando na transformação das elites administrativas em burguesia nacional, outro "passo em frente" para o domínio neocolonialista).

A ala esquerda de Bandung (um amalgama "progressista") entrava em conflito directo (e em alguns casos indirecto, palavroso e pouco eficaz, caracterizado pela máxima "um passo em frente, dois á rectaguarda e quatro para os lados") com o capitalismo,  internacional, nacionalizando as empresas estrangeiras e estatizando os sectores considerados estratégicos. A ala moderada (uma manta de retalhos nacionalista de direita, sempre com os olhos postos nas ex-metrópoles) era conciliadora com os interesses do capital, o permitia maiores possibilidades de ajustamento.

No plano das dinâmicas externas, esta diferenciação inseria-se guerra fria, entroncando-se nos conflitos "Leste/Oeste", "socialismo real / capitalismo". A ideologia da modernização (o desenvolvimentismo de Bandung) dava sentido á luta anticolonialista, sendo, no entanto portadora de um projecto  contraditório, que poderia denominar-se - usando uma expressão de Engels para descrever um eventual momento da social-democracia europeia, aproveitada por Samir Amin para definir o projecto de Bandung - "capitalismo sem capitalistas" (o que, obviamente, iria resultar no Leviatã do capitalismo de Estado). Era capitalismo pela concepção de modernização, que reproduzia as relações sociais essenciais e as relações de produção do capitalismo, ou seja, a relação salarial, a gestão empresarial, a urbanização, a educação submetida às necessidades da economia, a cidadania, etc..

Para trás ficaram outros valores inerentes ao capitalismo (e essenciais para resolução das suas contradições internas) como a democracia politica, a liberdade de associação, os direitos sindicais, a liberdade de expressão e outras conquistas sociais, fruto de séculos (mesmo milénios) de lutas e que representaram o primeiro momento da mundialização. A ideologia de Bandung conduziu às fórmulas de partido único, das eleições- farsa, às mitologias dos líderes fundadores da pátria, etc., que foram comuns na maioria dos países africanos. Nos países em que a burguesia nacional era quase inexistente, inexistente ou inanimada (letargia criada pelas relações coloniais) o seu ressurgimento, expansão ou embrião, eram vistos como perigosos, uma vez que dariam prioridade aos seus interesses imediatos, concorrendo com os interesses a longo prazo do Estado e das suas elites administrativas (saídas da pequena-burguesia e do campesinato), intelectuais e tecno-burocráticas.

A divisão nos movimentos de libertação nacional, entre "socialistas" e "moderados" agudizou-se em 1960, com os processos descolonizadores da França e da Inglaterra. Nesse ano África dividiu-se em dois blocos: o grupo de Casablanca (encabeçada pelo Egipto de Nasser, FLN da Argélia, e Gana) e o grupo de Monróvia, formado pela Costa do Marfim, Quénia, senghoristas e outros fiéis á França, Inglaterra e USA. As divergências entre os dois grupos foram evidenciados no Congo, com o grupo de Casablanca a apoiar o projecto progressista das forças populares reunidas em torno de Lumumba e o grupo de Monróvia apoiando o neocolonialismo. A tragédia do Congo foi perpetuada com Mobutu e a derrota sofrida pelo grupo progressista de Casablanca e pelas forças populares congolesas limou arestas e permitiu o consenso obtido em 1963 na Conferência de Adis-Abeba, com a criação da OUA.

A conciliação criava condições para a implementação do projecto de Bandung em África. Formalmente quase todos os Estados africanos o partilhavam e aderiram ao Movimento dos Não Alinhados, mesmo quando permaneceram sob tutela do Ocidente e inclusive sob protecção militar. Os Estados africanos adquiriram, desta forma alguma margem, face ao neocolonialismo. Os objectivos comuns de Bandung - a ideologia desenvolvimentista, o projecto do "capitalismo sem capitalistas - conseguiu alguns tímidos progressos, mas ao ignorar a lógica da expansão mundial do capitalismo, não acompanhou as contradições internas do capitalismo e as novas dinâmicas da globalização, o que comprometeu o processo de modernização e os avanços obtidos.

(continua)

Sem comentários:

Mais lidas da semana