quinta-feira, 3 de abril de 2014

VENEZUELA: A GOLPADA DO GOLPE



Rui Peralta, Luanda

I - Imagens de milhares de manifestantes nas ruas das principais cidades venezuelanas, o aparelho policial e militar a actuar e acções armadas efectuadas por grupos de civis, são divulgadas internacionalmente, nas últimas semanas, pelos órgãos de comunicação social, acompanhadas por ecos de golpe de estado e pelas acusações da oposição de direita que considera estar a Venezuela perante uma ditadura. Para os que pretendem aperceber-se da situação actual do país as dificuldades iniciam-se de imediato, através das próprias notícias que chegam, dos comentários e das imagens televisivas, do texto jornalístico ou apenas pela palavra, mistos descritivos e narrativos, cruzados com propaganda (a das facções em conflito e a propaganda da facção representada pelo órgão comunicante). A analise critica, ferramenta indispensável para a construção de um julgamento critico (e de um olhar critico), torna-se inexistente e o cidadão global é bombardeado com construções de cenários, geralmente construídos com restos fragmentados de situações descontextualizadas e com o discurso martelado do pró e do contra.

Em Dezembro de 2013 o governo bolivariano venceu as eleições, alcançando 49% dos votos e conquistando 72% das administrações locais. A oposição de direita, reunida na Mesa de Unidade Democrática (MUD), não aceitou os resultados. Por sua vez os sectores dissidentes á esquerda do governo alcançaram os 5% das intenções de voto e as facções oposicionista dissidentes da MUD ficaram-se pelos 2%. O discurso eleitoral das forças políticas governamentais (centradas no Partido Socialista Unificado da Venezuela, PSUV) foi baseado na memória do líder falecido, Hugo Chávez e no combate á especulação iniciada pelas grandes cadeias comerciais e que teve particular incidência nos preços dos electrodomésticos. O MUD, por sua vez, apostou numa campanha intencionalmente plesbicitaria, escamoteando e subvertendo a função real do acto eleitoral, apresentando as eleições como um mero “SIM/NÃO” sobre o processo bolivariano. Esta estratégia fracassou e assistiu-se á vitória das forças bolivarianas, num cenário de crise económica, politica e social.  

O ano de 2013 terminou mergulhado na inflação. A política governamental do “preço justo” foi um fracasso, responsável em grande medida pelos aumentos da inflação nos meses de Novembro e Dezembro em cerca de 7%. Por sua vez, ao aumentar a massa monetária em cerca de 70%, o Banco Central da Venezuela (BCV) tem uma fatia considerável na responsabilidade pelo elevado índice de inflação registado em 2013 (cerca de 56%). Enquanto isso, entre 2012 e 2013 a sobrefacturação de importações ultrapassou os 20 milhões de USD e Maduro admitiu publicamente que o governo não realizou devidamente o controlo das divisas e das empresas importadoras. Para concluir o panorama as reservas em divisas internacionais caíram um pouco mais de 8 milhões de USD, durante o ano de 2013, abrindo o ano de 2014 em cerca de 22 milhões de USD. 
    
Perante esta situação o governo empregou o capital político da sua vitória eleitoral em negociações com a MUD, tentando obter apoio para as medidas que pretendia implementar. Duas semanas depois da “vitória sobre o fascismo” Maduro e o PSUV reúnem-se cordialmente com a MUD, acordando a implementação do aumento do preço dos combustíveis. Num comunicado posterior a MUD anuncia que: “pone a disposición del Ejecutivo sus recursos técnicos y políticos para alcanzar el mayor consenso en una materia de tanta significación para la vida de los venezolanos”. Em posteriores reuniões, o governo e a oposição acordam sobre os planos de segurança (rapidamente implantados a nível regional pelos alcaides e governadores da MUD).

Apesar dos acordos sobre o aumento dos preços dos combustíveis, efectuados com as confederações patronais e com a MUD, o governo está preocupado com a reacção popular. O carisma e o prestígio pessoal da liderança de Chávez permitiu, em períodos anteriores, a implementação de medidas antipopulares sem que existisse qualquer perda da sua base de apoio, mas Maduro padece de alguns problemas no que toca a liderança e as negociações com a MUD foram vivamente criticadas pelas bases do PSUV e por alguns baronatos do partido que aguardam a sua hora para ascenderem á liderança. Nas “cotoveladas” entre as diversas facções burocráticas do PSUV ouvem-se, publicamente e amiúde, acusações de “desgoverno” que misturam-se com posições críticas assumidas pelas bases que acusam Maduro e a actual direcção do PSUV de “virarem á direita”.       
Zangam-se, pois, as comadres de Bolivar…

II - Enquanto os rituais bolivarianos sucedem-se (perderam alguma imprevisibilidade – característica que Chávez sempre emprestou a esses rituais - sendo agora, com Maduro, uma real chatice, feita de frases estudadas e de risos e sorrisos elaborados), na MUD factores como a derrota eleitoral, a recusa em aceitar os resultados e as negociações entre a facção de Capriles e dos partidos tradicionais com o governo do PSUV, agudizam as contradições internas. A ala encabeçada por Leopoldo Lopez, líder da Vontade Popular (VP) e a deputada Maria Corina Machado lançam no início de Fevereiro uma campanha denominada “la salida está en la calle”, sendo a primeira demonstração na Plaza Brión, em Caracas. No acto participaram os maoistas da Bandera Roja, o alcaide António Ledezma e a Federação de Centros Universitários da Universidade Central da Venezuela, cujo presidente é o intragável Juan Requesens.

Simultaneamente, na Ilha Margarita, a direita realiza um protesto de carácter xenófobo e ultranacionalista contra a selecção cubana de basebol, que participava na Série do Caribe (curioso como nesta demonstração a direita venezuelana utilizou as mesmas técnicas e os mesmos slogans da direita ucraniana contra a comunidade russa).  Dois dias depois realizam-se os primeiros protestos estudantis em San Cristóbal e Mérida. A VP e seus aliados, sectores mais radicais, tentam apoderar-se da direcção da MUD, capitalizando a situação económica e social do país.

A campanha deste sector da oposição caracteriza-se por uma componente provocadora (como por exemplo a acção contra a residência do governador de Táchira ou acções armadas na cidade de Mérida), tendo como objectivo o aproveitamento da reacção policial e do PSUV. Desta forma os sectores mais radicais da direita venezuelana, reunidos em torno da VP e permanecendo coligadas às restantes forças direitistas na MUD, geram acções desestabilizadoras, alargando o âmbito da crise económica e social com o intuito de abrir uma grave crise politica.

O PSUV, sentindo-se ameaçado, reage e utiliza grupos para-policiais para combater as concentrações da oposição (sejam de caracter violento ou pacifico) e ataca as zonas residenciais onde habitam os líderes e os militantes mais activos da oposição de direita (como, por exemplo ao ataque á residência do Monsenhor Chácon, em Mérida, cidade onde decorria um “cacerolazo”, no qual houve dois feridos). Esta reacção provocou uma mudança de conteúdo dos protestos, alargando a sua amplitude, como foi visível em 12 de Fevereiro, dia em que foram realizadas marchas em 18 cidades venezuelanas.

Na capital e no litoral os protestos incidiram sobre a libertação dos estudantes detidos, o fim das actuações repressivas policiais e o término da violência provocada pelas forças para-policiais e paramilitares, organizadas por militantes do PSUV. No interior do país, onde a crise é sentida de forma mais severa do que no litoral e na capital, o leitmotiv dos protestos foram a crise dos serviços públicos, as medidas de ajustamento e a inflação, ultrapassando as directivas da MUD (embora tenha aproveitado a oportunidade) nos protestos realizados nas cidades do interior. O PSUV realizou, igualmente, algumas concentrações e marchas de grande magnitude por todo o país, nesse mesmo dia, mas foi em Caracas que se registaram os acontecimentos que desencadearam um escalada nos protestos, em virtude da actuação da polícia, da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) e do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (SEBIN), que em coordenação com grupos para-policiais, perseguiram os grupos de estudantes que confrontaram-se com a polícia e provocaram danos em edifícios governamentais.

A Venezuela assiste á actuação de grupos de pressão em ambos os campos. Aquilo que a MUD pretende identificar como grupos de activistas e de estudantes, são de facto as suas milícias desestabilizadoras, em busca de provocar reacções e comportamentos menos próprios por parte da polícia. Quanto ao PSUV parece andar a utilizar os fundos públicos para constituir as suas milícias, contradizendo os apelos constantes á calma, proferidos por Maduro e apostando na sua mobilização no seio da GNB e da sua influência no SEBIN. Alguns sectores bolivarianos distanciam-se deste comportamento e desta forma de actuação anticonstitucional e lesiva dos interesses da democracia bolivariana (neste sector está o diário Ultimas Noticias, de linha editorial bolivariana, que publicou um interessante trabalho de investigação sobre as ligações entre o SEBIN, a GNB e as milícias do PSUV), mas em contrapartida, outros sectores, ligados á imensa e improdutiva burocracia criada durante o processo transformador em curso, pretendem agarrar-se com unhas e dentes, não ao processo revolucionário (estas camadas não acreditam nesse discurso) mas á forma como os seus interesse evoluem no processo.
    
Maduro agiu bem ao destituir o responsável máximo do SEBIN e ao acusar os agentes deste serviço que participaram nos actos repressivos, de terem agido contra a constituição e fora das instruções e procedimentos institucionais. Agiu correctamente quando responsabilizou os manifestantes direitistas das mortes e dos feridos e falou claro ao denunciar que estava em curso um processo similar ao do golpe de 2002. Mas as actuações das forças para-policiais e paramilitares do PSUV e da MUD marcaram, no dia 12 de Fevereiro, um ponto de inflexão nos protestos.
Os dados, viciados, foram lançados.

III - A maioria da informação sobre a actual campanha circula nos meios electrónicos, uma vez que os canais de televisão privados e públicos observam um acordo com o governo, referente á transmissão de imagens e de informações em directo que a Comissão Nacional de Telecomunicações considere que incitam á violência. A hipocrisia deste acordo assume proporções ridículas. É curioso como os “progressistas e revolucionários bolivarianos” alinham nestas fantochadas, atirando para o cesto dos papéis a sua fluente lábia sobre os “meios de propaganda do Império”. Enfim, o peixe morre pela boca, porque não resiste ao anzol… 

Os jornais venezuelanos têm um problema grave: o papel onde são impressos. Pois…as dificuldades de importar papel, leva a que a maioria dos jornais do país tenha reduzido de forma substancial o número de páginas e alguns jornais regionais saíram de circulação. A imprensa escrita privada, para além do problema do papel onde os seus tabloides são impressos, tem ainda um outro problema: o papel que desempenha. Uns são abertamente contrários ao governo, outros alinharam com o governo, não por uma questão de princípio, mas de interesse, o que leva a estabelecer fluxos de pró e contra absolutamente mirabolantes. A imprensa privada venezuelana não pode ser resumida na dicotomia pró/contra, porque existem os prós que já foram contra e os contras que já foram prós e os prós que estão a tomar o caminho do contra e os contras que estão em vias de tornarem-se prós.

Vejamos o exemplo da Cadena Capriles, cujo proprietário é Capriles o líder da MUD e candidato da direita contra Maduro nas ultimas eleições. Os trabalhadores da Cadena Capriles realizaram assembleias, á margem da administração e em ambiente de semiclandestinidade (absolutamente contrário ao que a lei preconiza, sendo um direito dos trabalhadores estes poderem realizar as suas assembleias de forma aberta), para oporem-se às linhas editoriais dos proprietários da Cadena Capriles e á restrição do direito de informação. É estranho? Não. É, apenas, revelador da actual situação do país. É a grande ressaca bolivariana.

Foram retirados os serviços de televisão por cabo e via satélite a canais internacionais que informam sobre a situação venezuelana, não porque seja uma política governamental, nada disso! É o acordo sobre segurança, assinado pelos “progressistas” bolivarianos e pelos “fascistas”. Ficam assim garantidos os direitos de propriedade sobre a informação e saí apenas o que não é considerado violento, atentatório da harmonia e da concórdia.

Uma das ameaças que pairam constantemente sob a sociedade venezuelana é (para além da corrupção sem fim, das condições inumanas das prisões, dos mecanismos jurídicos que nunca, ou tarde e a más horas, funcionam, da pressão inflacionária, da carestia, do desemprego, dos bandos de marginais) o golpe de Estado. O golpe de Estado é usado pelo governo e pela oposição, de forma constante e em grandes dosagens, sendo os cidadãos sempre convidados a recordar os acontecimentos de 2002. A ameaça é real e pela "overdose" de golpe, vai acontecer o mesmo que aconteceu a Pedro, quando foi comido pelo lobo.

Aparentemente não existem pronunciamentos militares antigovernamentais, nem deserções nas forças armadas, nem tampouco parece existir uma forte ligação entre os militares (quadros superiores e médios) e a burguesia venezuelana. Pelo contrário, os militares, aparentemente, encontram-se coesos em torno do governo e fazem parte da elite bolivariana, sendo muitos militares de patente superior, alegremente, do sector dos novos-ricos, conhecidos por “boliburgueses”. Temos portanto já bem desenvolvido o sentido “patriótico” dos negócios, cabendo aos militares o papel de “generais de mercado”, um fenómeno típico em diversas sociedades sul e centro-americanas, africanas e asiáticas.  
     
Mas tudo isto, todo este envolvimento bolivariano, todo este empenho patriótico das superiores hierarquias militares é aparente e pode ser quebrado pelas medidas de ajustamento que governo e oposição acordaram. Não porque estas medidas sejam profundamente antipopulares, mas sim porque podem afectar a ascensão dos seus negócios. Ora como o governo agita constantemente o golpe e a oposição não dá um passo sem referir a possibilidade do golpe, não será de admirar que o povo venezuelano uma bela manhã acorde com os veículos militares nas ruas, os aviões da Força Aérea no céu e a Marinha de Guerra no mar. E quando isso acontecer, adeus conquistas populares obtidas, adeus direitos adquiridos, adeus às campanhas de alfabetização, adeus á tímida criação de um sistema nacional de saúde, adeus á educação pública, livre, aberta, universal e gratuita e outros adeus que os pobres das cidades e dos campos, as comunidades indígenas, os trabalhadores e os desempregados, terão de fazer.

IV - A maioria da direcção da MUD não aprova a campanha da VP e assumiu publicamente essa posição de discórdia. A confederação patronal FEDECÁMARAS discorda das paralisações e igual posição tem o sector sindical afecto ao MUD. Gustavo Cisneros, considerado o “maior capitalista” do país, já anunciou o seu apoio ao governo e a REPSOL assinou um acordo de financiamento (mil e duzentos milhões de USD) á PDSVA. A hierarquia da Igreja Católica já manifestou o seu apoio aos planos de “pacificação das almas” do governo e Maduro ensaia uma aproximação aos USA. Por sua vez o líder da VP, Leopoldo Lopez, entregou-se às autoridades, que o responsabilizam pelas mortes ocorridas nos confrontos de 12 de Fevereiro.

Perante esta situação, onde se insere a lógica de um iminente assalto militar ao poder? Que indícios efectivos existem que esteja em curso um golpe de estado? É certo que toda a direcção da MUD (de Capriles a Lopez) esteve envolvida no golpe de 2002 e que a burguesia nacional assume o golpe de Estado como conceito predominante do seu repertório, sempre que vê os seus interesses serem afectados (o discurso da burguesia nacional venezuelana é baseado na dicotomia golpe de Estado/concórdia. Quando os seus negócios são afectados pelas medidas populares enche a boca de golpe de Estado, quando o governo toma medidas contrarias aos interesses populares, apela á concórdia e á harmonia entre “todos o venezuelanos”).

O ambiente de alerta criado pelos discursos “golpistas” do governo e da oposição é uma ameaça permanente às liberdades democráticas. Os mecanismos de censura criados pelos acordos entre o governo e a oposição (por via dos proprietários dos órgão de comunicação social privados) são um ataque camuflado ao direito de informação, ao direito e á liberdade de informar e de ser informado. O discurso da ameaça permanente do golpe é uma espada de Démocles que paira sobre a sociedade venezuelana e constitui um entrave ao processo de transformação em curso. O SEBIN (descendente bolivariano da DISIP, criada em 1969), em virtude da doutrina de segurança nacional assumida de mútuo acordo pelo governo e oposição, é exonerado das suas funções de serviço de inteligência e transformado numa agência de repressão, coordenadora de esquadrões da morte, á imagem dos seus antecessores pré-bolivarianos da DISIP.

Como pode a revolução bolivariana conviver com uma doutrina de segurança nacional que coloca os interesses do Estado acima dos direitos sociais e dos interesses gerais da soberania popular? Não será que o discurso do golpe e do contragolpe, criador das condições necessárias para a aplicação da doutrina de segurança nacional, o ABC da contrarrevolução encetada pelas elites bolivarianas, temerosas de perderem o controlo sobre o processo bolivariano de desenvolvimento e que este seja conduzido pela soberania popular? Não será a doutrina da segurança nacional a doutrina da contrarrevolução das elites bolivarianas, que não hesitam em chegar a acordos pontuais com os sectores oligárquicos da sociedade venezuelana?

A revolução bolivariana está em risco e isso é um facto. O movimento estudantil foi, literalmente, atirado para os braços da oposição. As camadas mais pobres da população, que depositam a sua esperança na política bolivariana de transformação e de desenvolvimento social observam, preocupadas, as medidas antipopulares tomadas pelo governo e os trabalhadores torcem o nariz aos acordos entre o governo e o patronato, enquanto as suas organizações e associações são ignoradas. A crise económica está a revelar a face real de alguns sectores bolivarianos. A pretensão de superar os problemas estruturais da economia venezuelana entregando-a nas mãos da burguesia nacional, o discurso ambíguo e propagandístico do “golpe” (que é uma ameaça real se as conquistas populares não avançarem) que entrega a politica de segurança aos militares e (ponto principal) a condução politica do processo transformador estar entregue a um partido corporativista, são factores que enunciam a decomposição do processo e que são o cerne da contrarrevolução interna. 
       
Os programas de assistência social encontram-se numa dinâmica regressiva desde 2007 e assiste-se a um emaranhado legislativo que restringe, na práctica, o direito á greve. Os conflitos sociais e laborais são resolvidos através da utilização do ineficaz e parasitário aparelho administrativo, ou seja, nunca são resolvidos, acabando a repressão por ter a ultima palavra. É assim que líderes comunitários (como o chefe indígena yukpa, Sabino Romero) e sindicalistas (como Ruben Gonzalez) foram detidos entre 2009 e 2011, o mesmo acontecendo, recentemente, a dez trabalhadores (entre eles José Bodas, secretário-geral da Federação unitária dos Trabalhadores do Sector Petrolífero) que participavam numa assembleia de trabalhadores na Refinaria de Puerto La Cruz. 
 
A crise afecta os trabalhadores, que arcam com o custo principal, enquanto aos sectores transnacionais encrustados na indústria petrolífera, á banca privada e ao comércio importador são atribuídas benesses e “incentivos”. Mais de nove milhões de cidadãos vivem em condições de pobreza e ¾ dos trabalhadores do sector público recebem baixos salários, enquanto os militares são os únicos que vêm os seus salários aumentarem, acima da inflação.

A revolução bolivariana atingiu uma encruzilhada. Ou aprofunda a democratização económica, melhora as condições de vida dos trabalhadores, desempregados e camadas desfavorecidas da população, ou continua na via do “ajustamento estrutural”, satisfazendo os interesses das camadas burocráticas criadas durante o processo e chega ao fim do seu caminho. Ou prossegue na via da reforma agrária, garantindo terras para os camponeses, garantindo as revindicações das comunidades indígenas e simultaneamente delimita áreas para a agricultura industrial (podendo aqui canalizar os sectores da burguesia nacional, atribuindo-lhes alguma utilidade) de forma a criar uma agricultura diversificada, que mantenha, por um lado, os tradicionais mercados comunitários, que insira o camponês na rede nacional e que utilize a intensiva agro-indústria para a exportação, ou continua na senda do “socialismo com capitalistas”, ao qual já nem mesmo o folclore e os discursos bolivarianos conseguem disfarçar a sua faceta utópica e reacionária.

Restam dois caminhos aos bolivarianos: ou caminham pelos trilhos dos pobres, ou guiam as suas potentes viaturas nas autoestradas dos ricos. É simples.

V - Se ao nível das dinâmicas internas a complexidade é grande, ao nível da dinâmica externa as coisas apresentam-se menos complexas. Washington continua a aproveitar a situação interna para manipular determinados factores e subjugar o processo bolivariano de desenvolvimento. Os sectores mais radicais da oposição (alguns são assumidamente fascistas) são uma jogada de pressão por parte dos USA, depois do discurso moderado para as eleições ter redundado em fracasso. Mas enquanto no terreno interno a Casa Branca utiliza os seus bonecos e bonecas, também no plano externo os fantoches grotescos aparecem. O mais grotesco desses fantoches é o Panamá, com o qual a Venezuela cortou relações diplomáticas e comerciais, na mesma altura em que Maduro chamou a atenção á Organização dos Estados Americanos, afirmando que a “Venezuela não solicitou o debate com a OEA sobre a sua situação interna. Não solicitámos a vossa intervenção na Venezuela. Teriamos de estar loucos para o fazer”.

Entretanto o Congresso dos USA aprovou uma resolução que expressa o apoio aos que “lutam pela democracia na Venezuela”, ou seja, uma moção de apoio aos bonecos “made in Venezuela” que a CIA maneja á distância (talvez a partir de Miami, onde se “habla” muito e que é um local preferido pelos reacionários não apenas hispânicos, mas de todo o mundo, de tal forma que pode ter o lema: “reacionários do mundo uni-vos…Em Miami!”). A proposta foi da congressista republicana Ileana Ros-Lehtinen, que no seu discurso de apresentação da moção no Congresso referiu: “Perante a face autocrática (…) que usa a violência e impõe a sua vontade aos cidadãos (…) palavras não são o suficiente. Temos de agir e devemos de agir agora! (…)”

De facto a USAID, o National Endowment for Democracy (NED) e o International Republican Institute (IRI) forneceram centenas de milhões de USD á oposição e mesmo a grupos estudantis como a Juventude de Acção, Venezuela Activa, etc. (talvez por isso este seja o “movimento de protesto” com mais ténis Nike e outros acessórios que na Venezuela custam muitos salários mínimos). As palavras da congressista são graves e cruzam-se com os fantasmas do golpe de estado, esgrimido pelo governo bolivariano e da oposição.

Talvez que, afinal, o golpe de Estado exista efectivamente na aparente inexistência de golpe, sendo assim um golpe virtual (o primeiro na História), um golpe que nunca termina, que está presente em cada medida antipopular, ou em cada legislação que retira direitos e liberdades. O golpe deve ser esse. De uns e de outros…É bom que o governo bolivariano não esqueça que para vencer o golpe de Estado (seja real, aparente ou virtual) não pode emaranhar-se em golpes mas sim envolver-se na Revolução. 

Fontes 

Brasil: Últimos polícias julgados por massacre do Carandiru condenados em São Paulo




Os últimos 15 polícias acusados de participação no massacre da prisão do Carandiru foram condenados na noite de quarta-feira (madrugada de hoje em Lisboa) a 48 anos de prisão.
Os réus foram processados pela participação na operação ao complexo penitenciário do Carandiru, em 1992, que tinha como objetivo conter uma rebelião e acabou com a morte de 111 reclusos.

Outros 58 agentes policiais já tinham sido condenados pelo caso, que foi dividido em quatro julgamentos devido à grande quantidade de réus e de vítimas. Todos podem recorrer em liberdade, já que as condenações ocorreram na primeira instância.

A presidente brasileira, Dilma Rousseff, afirmou que o julgamento representa "uma vitória contra a impunidade" e relembrou que já se passaram 21 anos desde o massacre na sua conta na rede social Twitter.

O responsável pela operação policial, o coronel da polícia Ubiratan Guimarães, foi julgado em 2001 e condenado a 632 anos de prisão mas foi absolvido cinco anos depois num tribunal de segunda instância, tendo morrido poucos meses depois.

O complexo do Carandiru era na época a maior prisão do Brasil, com cerca de oito mil presos, e considerada por organizações de direitos humanos como a maior prova do caos do sistema penitenciário brasileiro.

A prisão foi encerrada em 2002 e convertida num parque público.

FYB // APN – Lusa – foto Sebastião Moreira-EFE

Timor-Leste: ECONOMIA NÃO-PETROLÍFERA VAI CONTINUAR A CRESCER EM 2014/15




A economia não-petrolífera de Timor-Leste vai continuar em forte crescimento em 2014 e 2015, conduzida pelos gastos do Governo e pelo desenvolvimento do setor privado, referiu ontem o Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB), em comunicado.

Segundo o ADB, que cita o relatório sobre desenvolvimento asiático em 2014, nos próximos dois anos o Produto Interno Bruto (PIB) deve rondar os 8,5 por cento, o que representa uma pequena subida em relação aos 8 por cento registados em 2013.

"O grande desafio dos fazedores de políticas é transformar o petróleo em trabalho e serviços que produzam um crescimento sustentável e inclusivo", afirma, no comunicado, Shane Rosenthal, diretor do ADB em Timor-Leste.

Para o mesmo responsável, "isso implica um investimento a longo prazo no setor da educação, capacitação e infraestruturas, nomeadamente em estradas, fornecimento de água potável e eletrificação, sendo o ADB um parceiro empenhado naqueles investimentos".

Embora o Orçamento do Estado de 2013 tenha aumentado o capital público de investimento para 800 milhões de dólares, apenas 43 por cento daqueles fundos foram utilizados, refere o ADB.

O Orçamento do Estado para 2014 eleva 38 por cento a despesa corrente e aumenta em 47 por cento o capital de investimento do Governo, mas porque a execução orçamental é baixa o efeito da despesa do executivo no crescimento e na inflação é difícil de calcular.

Além do crescimento provocado pela despesa pública, o aumento de 13,6 por cento do crédito ao setor privado e o investimento direto estrangeiro apoiaram o crescimento daquele setor.

Segundo as estatísticas, o crescimento do setor privado está concentrado na venda a retalho, venda por grosso, transportes e comunicações, refere o ADB, salientando que o mercado financeiro continua subdesenvolvido em relação à concessão de crédito ao setor privado.

O Banco Asiático de Desenvolvimento refere também que a inflação foi mais moderada em 2013 devido à uma diminuição da despesa pública, à apreciação do dólar face aos principais parceiros comerciais do país e à diminuição dos preços internacionais dos alimentos.

A inflação em 2013 foi de 9,5 por cento contra os 10,9 por cento registados em 2012.

Lusa, Em Sapo TL 

Timor-Leste: ADVOGADO DE EX-GUERRILHEIROS PRESOS APRESENTOU RECURSO




Díli, 03 abr (Lusa) - O advogado de dois ex-guerrilheiros timorenses presos preventivamente por alegadas ameaças ao Estado anunciou hoje ter apresentado no Tribunal Distrital de Díli um recurso para levantar as medidas de coação impostas aos acusados.

"Interpus recurso da decisão das medidas de coação em relação a Paulino Gama e ao comandante Labarik", disse o advogado Paulo Remédios, afirmando que o tribunal tem 15 dias para responder ao recurso.

Paulino Gama (conhecido como Mauk Moruk), líder do grupo Conselho da Revolução Maubere, e José Santos Lemos (conhecido como comandante Labarik), membro do CDP-RDTL, foram detidos numa operação desencadeada pela polícia em cumprimento de uma resolução do Parlamento de Timor-Leste.

O parlamento de Timor-Leste aprovou este mês uma resolução em que pede à polícia para fazer cumprir a lei e a condenar o classifica como tentativas de instabilidade e ameaças ao Estado protagonizadas pelo Conselho de Revolução Maubere e pelo Conselho Popular da Defesa da República de Timor-Leste (CPD-RDTL).

O Conselho de Revolução Maubere exige a dissolução do parlamento, a demissão do Governo, a convocação de eleições, a restauração da Constituição de 1975 e a alteração para um regime presidencialista no país.

O CPD-RDTL é um grupo de ex-veteranos, liderado por António Matak, que se encontra sob termo de identidade e residência, que, após a restauração da independência, realizou várias manifestações em Díli a exigir o reconhecimento da independência proclamada em 1975, bem como a saída das organizações internacionais do país.

Em declarações à agência Lusa a semana passada, o primeiro-ministro timorense, Xanana Gusmão, reconheceu que aqueles grupos possuíam armas.

"A operação feita pela polícia continua a decorrer por todo o território. Não há ameaças de violência, não há ameaças de confrontos físicos e armados. A população tem reagido bem e as pessoas que receberam fardas têm cooperado e entregado", afirmou Xanana Gusmão, em declarações à agência Lusa.

"A operação só acabará quando vierem entregar as armas", salientou Xanana Gusmão, que acumula também a pasta da Defesa e Segurança.

MSE // APN - Lusa

UE apoia gestão das finanças públicas de Timor-Leste com 3,9 milhões de euros




Timor-Leste e a União Europeia assinaram um acordo de apoio à gestão das finanças para melhorar a coleta de impostos e diminuir a dependência do petróleo, anunciou ontem o Ministério dos Negócios Estrangeiros timorense.

O acordo foi assinado na segunda-feira durante a deslocação do chefe da diplomacia timorense, José Luís Guterres, a Bruxelas e prevê um apoio de 3,9 milhões de euros para a Gestão das Finanças Públicas.

"O acordo tem como objetivo a melhoria da política de coleta de impostos de forma a não dependermos apenas das receitas do petróleo e do gás. O apoio financeiro vai ser alocado para o Ministério das Finanças assim como outras instituições", afirmou José Luís Guterres, citado no comunicado.

Segundo o comunicado, o apoio à gestão das finanças públicas ocorre no seguimento de outros acordos assinados entre Timor-Leste e a União Europeia, nomeadamente o Programa de Reabilitação e Manutenção de Estradas Distritais, Projeto Integrado de Nutrição e Acordo Financeiro da Aliança Mundial contra as Mudanças Climáticas.

"A União Europeia está comprometida a continuar a dar todo o apoio ao desenvolvimento sustentado da nossa economia", acrescentou José Luís Guterres.

De Bruxelas, o chefe da diplomacia timorense viaja para a China onde se vai juntar ao primeiro-ministro, Xanana Gusmão, para uma visita oficial que vai decorrer entre 06 e 14 de abril.

Lusa, em Sapo TL
 

Austrália veda acesso a arquivos sobre crimes de guerra indonésios em Timor- Leste




O Tribunal de Recurso Administrativo da Austrália deu razão ao Arquivo Nacional, que recusou a um professor universitário acesso a arquivos com informações sobre crimes de guerra indonésios em Timor-Leste, noticiou hoje a imprensa australiana.

Em janeiro, o procurador-geral australiano George Brandis já tinha impedido a presença do professor e antigo membro das forças armadas australianas Clinton Fernandes nas audiências.

Clinton Fernandes é professor associado da Universidade New South Wales, em Sydney, e tenta há seis anos ter acesso a arquivos dos departamentos das Relações Externas e Comércio do Governo australiano, que têm relatos sobre uma grande ofensiva militar indonésia em Timor-Leste ocorrida no final de 1981 e no início de 1982.

Na operação, os militares indonésios utilizaram mais de 60 mil civis como escudos para expulsar guerrilheiros de determinados locais. A operação terminou com um massacre de centenas de civis timorenses.

Clinton Fernandes pediu para consultar registos de conversas entre diplomatas australianos em Jacarta com um oficial da inteligência indonésia, assim como telegramas diplomáticos australianos e relatórios dos serviços de inteligência.

O Departamento de Defesa australiano já reconheceu que monitorizou comunicações de rádio de militares indonésios em Timor-Leste, mas o Arquivo Nacional da Austrália disse que o acesso a alguns registos solicitados pelo professor "contraria os acordos da Austrália com os Estados Unidos sobre a proteção de informação classificada".

Na audiência, realizada quarta-feira, o juiz Duncan Kerr lamentou ter de tomar uma decisão que era "incapaz de explicar".

O juiz referia-se a evidências dadas pelo Departamento das Relações Externas e do Comércio que em maio de 2013 o governo norte-americano aconselhou o executivo australiano a manter o "acesso restrito a quatro documentos" que permanecem "sensíveis".

As autoridades australianas referem também que a divulgação dos documentos poderia provocar danos nas relações com parceiros internacionais e lembrou a "especial sensibilidade" das relações entre a Indonésia e a Austrália, sublinhando que existem atualmente "tensões significativas", explicou o juiz.

Clinton Fernandes disse à imprensa que estava determinado em continuar a lutar pela consulta e divulgação dos documentos.

"Não deveríamos estar a encobrir atrocidades contra o povo timorense e seus padres e irmãs por mais de 30 anos. Vou continuar a desafiar os tribunais, ganhe ou perca. Quinze anos nas forças armadas australianas treinaram-me para ser resiliente", disse.

Lusa, em Notícias ao Minuto

Brasil: SENADOR PEDE IMPIACHMENT DE DILMA ROUSSEF PELO CASO PASADENA




Conhecido por seus discursos inflamados contra o governo, o senador Mário Couto (PSDB-PA) encaminhou na noite de terça-feira (1º) pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff ao presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). Couto afirma que Dilma deve perder o mandato porque teria cometido crime de responsabilidade na operação de compra da refinaria de Pasadena (EUA) pela Petrobras, em 2006. O tucano afirma que Dilma, presidente do Conselho de Administração da estatal na época da compra, adotou comportamento "omisso" ao autorizar a compra da refinaria. Couto também acusa a presidente de ter conhecimento, desde 2007, das cláusulas que trariam prejuízo à estatal no negócio. 

"Não há justificativa que a presidente Dilma não tomou iniciativa para investigar a lambança quando presidia o conselho e não o fez também depois de presidente da República, quando a Petrobras se viu obrigada pela Justiça americana a comprar a outra metade da refinaria por US$ 820,5 milhões", afirma o senador no pedido. Couto diz que, pela Constituição Federal, os crimes de responsabilidade são "passíveis de perda do cargo com inabilitação até cinco anos quando praticados pelo presidente da República ou por ministros de Estado". 

"De qualquer ângulo que se analise a questão, ela deve ser responsabilizada, seja pela conduta comissiva enquanto conselheira e ministra de Estado, ou quando presidente da República, de forma omissiva, uma vez que sabia de tudo e nada fez, quedando-se em um silêncio criminoso que gerou ao país um prejuízo de bilhões de dólares", afirmou. Para que o pedido de impeachment de Dilma tramite no Congresso, a Câmara tem que acatar a solicitação de Couto. Depois, o processo teria que correr na Casa Legislativa, mas deputados governistas afirmam que não há chance do pedido prosperar. 

POLÊMICA

A polêmica sobre a compra de Pasadena ganhou força depois que Dilma, há duas semanas, admitiu ter aprovado a compra da refinaria com base em "parecer falho" elaborado pelo então diretor internacional da Petrobras Nestor Cerveró. Em 2006, a presidente comandava o conselho da estatal que autorizou a compra de Pasadena.

Na foto: O senador Mário Couto (PSDB-PA) encaminhou pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff - Pedro França/Agência Senado/Divulgação - Arquivo

Brasil: MENSALEIROS SERÃO JULGADOS NOVAMENTE




Todo condenado, no campo do direito criminal, tem direito a dois julgamentos, sem nenhuma restrição. O STF vem deploravelmente ignorando esse direito

Luiz Flavio Gomes – Carta Maior

A ciência médica tem suas verdades: com 40 graus, você está com febre. A ciência jurídica tem suas regras. Elas valem para todos (petistas, peessedebistas, esquerdistas, direitistas , reacionários etc.). Uma delas é a seguinte:

Todo condenado, no campo do direito criminal, tem direito a dois julgamentos, sem nenhuma restrição. Isso significa a integral revisão dos fatos analisados, das provas produzidas assim como do direito aplicado. Tecnicamente se chama “duplo grau de jurisdição”, que está previsto no art. 8º, II, “h”, da Convenção Americana de Direitos Humanos, em vigor no Brasil desde 1992. Ela é de aplicação obrigatória pelos juízes brasileiros, por força do art. 5º, § 2º, da Constituição federal. 

A Suprema Corte do nosso país (STF) vem deploravelmente ignorando esse direito e reiteradamente violando-o, todas as vezes que condena alguém diretamente (no último ano o STF mandou 6 parlamentares para a cadeia) e já proclama o trânsito em julgado, sem dar ao réu o direito ao duplo grau de jurisdição (segundo julgamento). É um vício procedimental inaceitável e inconvencional (porque viola o direito interamericano). O STF, no entanto, também nesse tema, ignora completamente o direito internacional, que foi aceito pelo Brasil espontaneamente.

O direito a dois julgamentos existe como garantia mínima de todas as pessoas processadas criminalmente, dentro do âmbito espacial do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, da OEA. A jurisprudência da Corte Interamericana, admitida pelo Brasil em 1998, é pacífica nesse sentido (especialmente a partir do caso Barreto Leiva contra a Venezuela, julgado em novembro de 2009). A condenação criminal restringe direitos muito relevantes das pessoas (liberdade, patrimônio etc.) e pode conter erros de procedimento ou de interpretação ou ainda injustiças. 

Ninguém está isento de errar (errare humanum est). Trata-se, assim, de garantia civilizatória inquestionável, que o STF, especialmente seu atual presidente, teima, equivocadamente, em não aceitar. Não importa quem é o réu (petista, peessedebista etc.). Isso não tem relevância para o direito ao duplo grau de jurisdição. 

Se alguém tinha alguma dúvida sobre o direito citado, basta ler a nova sentença da Corte Interamericana proferida no dia 30/1/14 (caso Liakat Ali Alibux contra Suriname, que já corrigiu seu direito interno em 2007, depois do julgamento viciado de Alibux). Mesmo quem é julgado pela máxima Corte do país tem direito ao duplo grau. Não importa se é uma autoridade com foro especial (deputado, senador etc.) ou algum outro réu que é processado juntamente com ela. Não se pode confundir o sistema europeu com o interamericano. 

Todo país deve adequar sua legislação interna para abrigar o duplo julgamento, antes que a sentença transite em julgado. Os países da OEA estão revisando seus ordenamentos e a solução mais frequente tem sido prever o primeiro julgamento por uma Turma e a revisão pelo Pleno (isso atende integralmente a jurisprudência da Corte citada). A maioria dos países já está agindo dessa maneira. 

É dever moral e jurídico de todos os países cumprirem os tratados internacionais que firmam (pacta sunt servanda). Portanto, são deploráveis e extremamente perniciosas para o avanço dos direitos humanos e da cultura civilizatória as declarações de alguns ministros ou ex-ministros (Barbosa, Peluzo, Jobim, Marco Aurélio) de que as decisões internacionais não contariam com eficácia jurídica no âmbito do direito interno ou que os réus condenados pelo Supremo não teriam direito de postular o duplo grau de jurisdição. 

Com formação jurídica vinda do século XIX (sistema jurídico da legalidade), eles ignoram o direito internacional vigente assim como o fato de que o Brasil vem cumprindo, com maior ou menor dificuldade, todas as decisões da Comissão ou da Corte Interamericana (veja os casos Maria da Penha e Ximenez Lopes, por exemplo). O mais preocupante, do ponto de vista estritamente jurídico, é saber que todos os réus condenados pelo STF estão cumprindo suas penas mesmo antes do trânsito em julgado final (ou seja: mesmo antes do segundo julgamento necessário, quando o réu recorra). O STF está afirmando a coisa julgada onde não deveria (onde não existe coisa julgada, por falta de cumprimento das regras e da jurisprudência internacionais).

*LUIZ FLÁVIO GOMES, 56, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil

GUERRA E PAZ



Martinho Júnior, Luanda

1 – De todas as cidades angolanas a cidade do Cuito foi aquela em que a intensidade dos combates se prolongou por mais tempo, no quadro duma guerra que a propaganda de feição da globalização diz que foi “uma guerra civil”…

Dados os contextos históricos por que passou o continente africano e dadas as conjunturas correntes no âmbito dos processos de globalização, “guerra civil” é o rótulo que interessa precisamente àqueles que a partir de fora são responsáveis directos e indirectos pelo subdesenvolvimento, pelo estado deplorável em que se encontram os povos do continente e portanto pelas causas profundas da miséria, da fome, do desamparo, dos conflitos, tensões e guerras por que têm passado os africanos.

Aos mentores e tutores da globalização de feição ao seu carácter unipolar e hegemónico, interessa “sacudir a água do capote” de suas responsabilidades, pelo que dizem eles que as guerras em África são “guerras civis”… para eles jamais aparecerem nos dramáticos filmes de degradação que as contemplam!

Ao colocar as coisas nestes termos e sem me alongar muito, em jeito conclusivo digo claramente que os interesses externos exercem no continente africano influências de tal ordem, que não há margem para qualquer dúvida: não há praticamente conflito algum que o peso das ingerências externas não se faça sentir e por isso os conflitos, as tensões e a guerras não podem ser considerados de “civis”!

De facto África, por exemplo, não produz armas, salvo na África do Sul e no Egipto, mas tem toda a legitimidade de ter levado por diante o movimento de libertação, que se deve assumir hoje como ontem e com os olhos colocados nas possibilidades emergentes que há em relação ao futuro!

Praticamente todas as armas vêm de fora, são produzidas fora do continente e isso gere também estímulos que se encaixam nos acontecimentos correntes!

Veja-se outro exemplo: quantas esquadras da NATO estão em constante assédio a África, sob os rótulos mais variados (luta contra o tráfico de drogas, luta contra a pirataria, luta contra a migração clandestina, etc.), quando os interesses africanos no mar são esquecidos inclusive por parte dos comandantes dessas esquadras (luta contra a pesca clandestina, luta contra a poluição por via de depósito de lixos tóxicos, luta contra a introdução clandestina de mercadorias fugindo ao fisco, etc.)?!

Que ninguém, em África ou em qualquer outra parte do mundo, se deixe intoxicar com o rótulo de “guerra civil”!!!

2 – O Cuito sofreu uma guerra que envolveu aviação, artilharia, blindados e transportes de ambos os lados, tendo até havido gente que não era angolana em muitas acções, pois era necessário manusear algumas armas que os angolanos desconheciam até então e haviam sido adquiridos “a quente”!

Esse é o caso, por exemplo, dos Ouragan de Savimbi adquiridos na Ucrânia!

As batalhas que foram travadas em Angola por causa dos “diamantes de sangue” integraram-se num leque tão vasto de conflitos que muitos consideraram como a “Iª Guerra Mundial Africana”!...

…Em Angola, por exemplo, estiveram também presentes traficantes de armas internacionais, um deles muito conhecido, Victor Bout, gente que tirou partido do desmantelamento do bloco socialista e da implosão da URSS para traficar armas: eles contribuíram para fomentar as guerras, quantas vezes no engodo das riquezas africanas!

3 – As mulheres foram as que mais sofreram com as guerras em Angola, duma forma geral e muitas delas continuam a sofrer, doze anos depois do calar das armas!

Elas foram não só, quantas vezes, combatentes, mas participaram também de muitos sectores tidos como de retaguarda: da logística, das comunicações, da reparação de equipamentos, dos serviços, etc.

Por outro lado, elas eram a garantia insubstituível na educação, na saúde, na capacidade de resistência dos agregados familiares muitas vezes depois do falecimento do chefe de família!

No Cuito a densidade de viúvas é acima de muitas outras cidades do país e, doze anos depois do calar das armas, no fim do mês-mulher e na data do 4 de Abril, uma pergunta subsiste: o que fazemos nós, “na paz que estamos com ela”, em benefício das nossas viúvas e dos órfãos, as viúvas e os órfãos de tantos heróis, de quem tanto se deve?

4 – As viúvas, por exemplo, dos combatentes falecidos das Forças Especiais do Bié, as viúvas dos combatentes da LCB, muitas delas têm sobrevivido em situações de prolongada precariedade e marginalidade, tendo a seu encargo os órfãos dos combatentes que caíram!

Apesar disso, elas não mereceram até hoje a atenção devida, pois nem os combatentes das Forças Especiais, nem os da LCB, aqueles que em tempos respondiam à Segurança do Estado, foram abrangidos pelos acordos e, apesar do MPLA e do estado angolano terem começado a corresponder com base nas políticas de Reconstrução Nacional, da Reconciliação e da Reinserção Social, há dentro do executivo, “muita areia no motor”!

Angola está em dívida para com os heróis de muitas batalhas, entre elas a batalha do Cuito (capital do Bié) e se está em dívida em relação aos combatentes caídos, que dizer em relação às viúvas e aos órfãos que estão vivos?

As viúvas e os órfãos da cidade do Cuito, uma vez que os combatentes pertenciam a forças que não foram abrangidas pelos acordos, estão ainda a ser esquecidos, apesar de já haver decisões justas… em relação às quais alguns sectores do executivo não estão até agora a corresponder!

Muitas questões se equacionam e aqui vou colocar quatro delas:

Que paz se está a construir, quando há ainda tanto que fazer em termos sócio-políticos para resolver questões de fundo no âmbito dos antigos combatentes e seus familiares, em grande parte devido à ”areia no motor” que existe em alguns sectores do executivo?

O que se está a fazer em termos de valorização da mulher angolana, quando as viúvas dos nossos combatentes caídos por Angola, estão ainda entregues a tantas dificuldades e até ao esquecimento?

Qual a factura, em termos de implicações sócio-políticas e materiais de toda a ordem, desse injustificável esquecimento, em relação ao futuro, tendo em conta a existência de tantos órfãos?

Por que razão, com tanta legitimidade e de forma exemplar, está o Presidente do MPLA, da República e Comandante-em-Chefe das FAA, engenheiro José Eduardo dos santos, a avançar com seus pares africanos par uma paz pan-africana e em Angola haver ainda no executivo algumas personagens que parecem colocar deliberadamente tanta “areia no motor”?

Foto: Martinho Júnior, em 14 de Junho de 2011: Praça-nobre da cidade do Cuito, capital da geo-estratégica Província do Bié, mãe da água interior de Angola. Eis dois símbolos que explicam a lógica com sentido de vida – dos escombros ergue-se a vida, por via da reconstrução duma emblemática igreja e da estátua duma mulher preparada para um banho, na capital da matriz da água interior, uma matriz que cujo fulcro é a região central das grandes nascentes do país. A paz começa a fazer parte da moderna antropologia angolana – é um processo cultural que vai para além do manancial sócio-político, psicológico e integra os processos soberanos da gestação da identidade nacional.

A consultar:
- A tripla fronteira (escrito a 9 de Julho de 2011) – http://paginaglobal.blogspot.com/2011/07/tripla-fronteira.html

Angola: DIVERSIFICAR A ECONOMIA



Jornal de Angola, editorial

Os esforços de diversificação da economia ganham pernas para andar à medida que Angola ensaia um conjunto de passos no fortalecimento do sector não-petrolífero.

Da agricultura à agropecuária e pescas, passando pela área industrial e dos serviços, o nosso país acelera a diversificação da economia.  Trata-se de um processo complexo para um país que, submetido a uma das mais sangrentas guerras que reduziu a zero vários sectores, ficou muito dependente de um único sector. 

Hoje, os desafios são enormes, mas as perspectivas de desenvolvimento no sector não-petrolífero nunca foram tão encorajadoras como agora com a aplicação do Programa de Governo 2012-2017. Os dados indicam uma variação considerável na execução de projectos que incidem sobre sectores que desempenham um papel importante na diversificação económica. 

Há dias, o bureau político do partido no poder, no seguimento de uma reunião que visou analisar a governação do país e as questões internas, fez importantes recomendações ao Executivo.  Uma das recomendações da direcção do MPLA foi a necessidade de acelerar o processo de diversificação da economia tendo como principal foco o aumento da oferta de postos de trabalho e o aumento da produtividade em todo o país.

Acreditamos serem oportunas as exortações do órgão de direcção do partido da maioria, na medida em que uma das estratégias do Executivo passa pela atenuação dos efeitos resultantes dos choques externos na nossa economia. No fundo, o processo de diversificação da economia está a funcionar como uma espécie de amortecedor e factor que afasta as vulnerabilidades. As reformas em curso ao nível da legislação laboral, a criação de instrumentos legais que regulam o trabalho, o auto-emprego e demais iniciativas têm tido um papel importante na expansão do mercado de trabalho e na melhoria das relações laborais. 

Do sector primário ao secundário, passando pelos serviços, o número de empregos cresceu e tende a crescer muito mais à medida que são dados passos seguros na economia nacional. É preciso dar continuidade à estratégia que proporciona maior atenção à formação de quadros para o provimento de funcionários qualificados necessários nas várias esferas da Administração do Estado e das empresas.
 
Com a diversificação do mercado de trabalho, atendendo à dinâmica dos tempos modernos, pretende-se que a força de trabalho em Angola seja competitiva o suficiente para gerar rendimento.

Ainda bem que ao nível do mais importante sector, a agricultura, a área de investigação conhece importantes conquistas, a julgar pelo crescimento do número de investigadores que começam a surgir em Angola. Os quadros e responsáveis do Instituto de Investigação Agronómica desempenham um papel importante na investigação e pesquisa para a melhoria das culturas alimentares em todo o país. 

Em todos estes esforços, obviamente constitui prioridade o fortalecimento do empresariado nacional, através do acesso a um conjunto de factores que facilitem a sua rápida inserção no processo de desenvolvimento nacional. O acesso a linhas de crédito e ao financiamento em condições bonificadas devem ser uma das condições para que se efective o fortalecimento dos empresários nacionais. 

As áreas em que há maior necessidade de presença das instituições bancárias para alavancar a economia local são as zonas rurais. Nestas áreas, a estratégia de desenvolvimento e progresso de Angola passa pelo apoio à produção familiar e pelo fortalecimento do pequeno comércio, enquanto sustentáculos do crescimento sustentado de todas as latitudes geográficas de Angola. 

De Cabinda ao Cunene, o pequeno comércio encontra-se em todas as localidades, realidade que o transforma em importante instrumento na estratégia do Executivo no sentido de criação de riqueza para facilitar melhor redistribuição. Trata-se de uma actividade na qual a maioria da população goza de algum tipo de experiência, facto que quando combinado com os esforços do Executivo transforma o pequeno comércio numa ferramenta de progresso social. 

O processo de diversificação da economia angolana não é apenas um desafio das instituições do Estado, mas de toda a sociedade. Afinal, é do interesse de todos os angolanos que a economia angolana não fique à mercê dos choques e efeitos perversos vindos de fora e que geram desemprego e miséria. Todos os angolanos são responsáveis, cada um a nível do seu sector, na batalha para tornarmos Angola menos dependente do petróleo.

Temos esperanças fundadas de que o Executivo vai acatar as exortações do bureau político do MPLA e dar passos no sentido da aceleração do programa de Governo que visa aumentar os postos de trabalho, valorizar a mão-de-obra nacional, promover os empresários locais e inverter a dependência para com o sector petrolífero.

Cimeira África-União Europeia: A IMIGRAÇÃO VAI SER FACILITADA?




Casimiro Pedro - Jornal de Angola

ANGOLANOS COMEMORAM 12 ANOS DE PAZ




Luanda - Os angolanos celebram no próximo dia 4 de Abril 12 anos desde que o país alcançou a paz e a reconciliação nacional.

Foi a 4 de Abril de 2002 que o povo angolano presenciou com entusiasmo, no Palácio dos Congressos, em Luanda, o abraço solidário entre filhos da mesma terra, até então separados pela guerra, numa cerimónia marcada pela assinatura do Memorando de Entendimento Complementar ao Protocolo de Lusaka (Zâmbia).

O documento, assinado pelo ex-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas Angolanas, general Armando da Cruz Neto, e do então responsável do Alto Comando das Forças Militares da Unita, Geraldo Abreu Muendo "Kamorteiro", mudou o curso da História da República de Angola.
 
O acto, que marcou o fim de um longo período de guerra, que se saldou em milhares de deslocados, mutilados e órfãos, foi assistido pelo Chefe de Estado angolano, José Eduardo dos Santos, por representantes da comunidade internacional e várias entidades nacionais.
 
A partir daí, as chefias militares das FAA e da Unita começaram a dar os primeiros passos significativos para a validação do cessar-fogo assinado, marcando a cerimónia formal da incorporação dos oficiais e militares no exército nacional.
 
É assim que o 4 de Abril de 2002 se tornou numa das maiores conquistas do povo angolano, a seguir à independência nacional (11 de Novembro de 1975), por marcar uma viragem decisiva no processo político e de desenvolvimento de Angola. A data foi instituída feriado nacional e apontada como um importante marco de referência histórica na luta do povo angolano.
 
Hoje, o país vive um ambiente de paz justa e definitiva, paz essa alcançada sem a imposição de forças externas, mas resultado do esforço dos angolanos, que entenderam que havia a necessidade da cessação das hostilidades e de encetarem o processo de conclusão das tarefas remanescentes do Protocolo de Lusaka, tendo em vista a reconciliação e reconstrução do país.
 
Pela primeira vez, um protocolo visando a paz foi assinado, em território nacional, sem qualquer mediação externa, correspondendo aos interesses mais legítimos dos angolanos.
 
Daí a crença geral de que esta é uma paz definitiva, porque é consolidada no dia-a-dia dos angolanos, através de acções e atitudes práticas, que exigem o contributo de todos para que seja realmente irreversível.
 
Esta traduz a vontade dos angolanos no sentido de que sejam removidos todos os factores do passado, para se poder construir uma pátria unida, solidária e madura, orientada pelos valores da unidade nacional, da democracia, liberdade, justiça social e pelo respeito ao próximo.
 
“Quem ama verdadeiramente a Paz tem de saber perdoar, reconciliar-se com o seu próximo, contribuindo assim para uma união verdadeira e sólida dos angolanos, sem prejuízo para as divergências que uns e outros possam expressar", disse o Presidente da República, José Eduardo dos Santos.
 
Conquistada a paz, novos desafios se colocam, pois torna-se necessário envidar esforços para a sua consolidação, através do desenvolvimento de um conjunto de acções, que visem combater a fome e a pobreza.
 
Se, até 2002, mais de quatro milhões de angolanos eram deslocados, cerca de 170 mil eram portadores de deficiência e havia uma  taxa de desemprego que se aproximava dos 43 por cento, os últimos 12 anos estão registados como um dos períodos de maior crescimento económico, com sinais concretos de estabilização da inflação, suportada por uma política macroeconómica reconhecida pelas principais instituições internacionais.
 
Angola assume-se como país do futuro, onde o Governo tem programas e metas orientados para a sua reconstrução e com um forte investimento no sector social.
 
O Orçamento Geral do Estado (OGE) passou a ter, como uma das maiores preocupações, o sector social, que inscreve o desenvolvimento de vários programas para o reforço de uma economia equilibrada.
 
Com a paz, os angolanos estão não só a fazer conquistas económicas e sociais, como promovem a tolerância e o respeito pela diferença de opinião, bem como incentivam o sentimento patriótico aos jovens e crianças, ao mesmo tempo que trabalham no sentido de fortalecer as instituições de um Estado Democrático de Direito como premissa indispensável para encetar, com firmeza, novos passos rumo ao crescimento harmonioso do país.

Angop

A TRIPLA FRONTEIRA



Martinho Júnior, Luanda

I - A cidade do Cuito, capital da Província do Bié, é com esse estatuto a cidade mais próxima do centro geográfico de Angola, que coincide com a matriz das grandes nascentes hidrográficas do país.

Durante a guerra que surgiu em sequela da luta contra o “apartheid”, a guerra que se internacionalizou e se encadeou com o descalabro da região central de África (“Iª Guerra Mundial Africana”), por que Savimbi entendeu participar recorrendo à rebelião armada na tentativa da conquista do poder em Angola pela via da “guerra dos diamantes de sangue”, a cidade do Cuito em 1992 foi palco, conjuntamente com as cidades do Huambo e de Malange, dos mais encarniçados combates.

Esse período foi para alguns conhecido como a “guerra das cidades”, mas resultava da aplicação dos conceitos de Mao Tse Tung sobre a guerra revolucionária, que Savimbi aprendeu nas academias chinesas para depois à sua maneira vir aplicar em Angola: “realizar o cerco às cidades a partir do campo, para depois tomá-las”, um projecto que teria de começar pelas capitais provinciais, a fim de, por último, chegar à capital e tomar o poder pela via armada.

O assédio ao Cuito tornou-se mais fácil a Savimbi por várias razões e entre elas destaco a fragilização da posição governamental em função dos Acordos que haviam sido assinados primeiro em Bicesse, fez já 20 anos e depois em Lusaka.

O Governo havia não só desmobilizado enormes efectivos das FAPLA que foram entretanto extintas, mas no Bié desmobilizou por tabela as Forças Especiais da Segurança do Estado, Ministério que acabaria também por ser extinto.

As Forças Especiais acabaram por desempenhar entre 1976 e 1990 um papel contributivo muito forte no reforço geo estratégico na luta contra o “apartheid” e contra as sequelas do colonialismo e “apartheid”.

Em 1977 era Governador Provincial do Bié Faustino Muteka (na actualidade Governador do Huambo) e o movimento de libertação havia decidido com coerência geo estratégica criar as Forças Especiais no Bié, às ordens do Presidente Agostinho Neto e articulando a Defesa e a DISA, para procurar conseguir supremacia no planalto central e fazer face às incursões impulsionadas pelo regime do “apartheid”, manobra que da parte da África do Sul integrava tacitamente os efectivos dum Savimbi que entretanto a administração republicana de Ronald Reagan havia considerado de “freedom fighter” (tal como fizera com os “contras” na Nicarágua e com Bin Laden no Afeganistão).

O Presidente Agostinho Neto, tendo em conta o cenário da luta contra o “apartheid”, aplicou a favor do Estado Angolano a receita similar à que o colonialismo português havia aplicado ao MPLA no Leste, quando pela via da “Operação Madeira” atraiu Savimbi à sua órbita, de forma a que suas forças servissem de “almofada amortecedora” contra a tentativa de progressão do movimento de libertação em direcção ao planalto central; desta feita, as Forças Especiais desempenhavam papel análogo na luta contra o “apartheid”, servindo de “almofada amortecedora” contra as SADF coligadas a Savimbi, desejosos de reverter a seu favor as estratégias no planalto central.

As Forças Especiais, conjuntamente com as FAPLA e a ODP (Organização de Defesa Popular) garantiam, numa região decisiva para o todo nacional, o exercício da soberania e a “última fronteira” em direcção a norte por parte das incursões militares, de inteligência e de reconhecimento dos racistas sul africanos dentro do território de Angola após o insucesso da “Operação Savannah”.

Os sul africanos tentaram em vão, em estreita consonância de esforços com Savimbi, vencer essa barreira geo estratégica, na azáfama de, a partir do planalto central, alcançar por fim Luanda, desde a declaração de Independência a 11 de Novembro de 1975 e Savimbi acabaria em 1992 de manter essa tentação, o que influenciou decisivamente na sua decisão de tomada das capitais provinciais após o “encerramento” das FAPLA e das Forças Especiais (neste caso no Bié).

Os sul africanos durante a década de oitenta chegaram mesmo a desembarcar meios através de vários voos de seus C-130 sobre a parte sul da Reserva Integral do Luando, a leste do curso do rio Cuanza, a fim de “catapultar” as incursões na direcção norte.

Apesar desse desembarque de material resultar no incremento das acções de Savimbi, os resultados foram escassos.

Em 1977 foi formado no Bié o 1º Batalhão das Forças Especiais, unidade que iria impulsionar pouco a pouco a formação de mais Batalhões que comporiam a Brigada e, sob orientação de Faustino Muteka, procedeu-se ao recrutamento para completar o efectivo do Batalhão a partir dos grupos de acção e células do MPLA em todos os Municípios e principais Comunas do Bié.

Como em todos os recrutamentos para a DISA e depois para a Segurança do Estado, só poderiam ter acesso a essas instituições da 1ª República membros do MPLA, o que significa que o efectivo das Forças Especiais só ingressou nelas por que todos os recrutas eram do MPLA.

A ideia da barreira de resistência ao “apartheid” no Bié, para além das concepções geo estratégicas, integrava componentes ideológicas que inter-agiam com a implementação do próprio Estado Angolano: eram as ideias do movimento de libertação em África que estavam presentes, que eram instrumento de Defesa e Segurança do Estado em formação e continham elementos que davam consistência ao facto de “na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul estar a continuação da nossa luta”.

Esses conceitos ideológicos nada tinham a ver com ideologias “stalinistas”, identificando-se com os conceitos e estratégias das revoluções na América Latina, bem como com a luta de libertação em África, perseguindo políticas de Não Alinhamento e de exercício sem ingerências da soberania nacional.

Desde os primeiros Acordos sobre Angola, a começar com o de Bicesse há 20 anos, nunca os efectivos que integravam a Segurança do Estado, incluindo as Tropas Guarda Fronteira, as Forças Especiais, ou as Unidades de Luta Contra Bandidos, foram tidos nem achados.

As componentes militares presentes nos Acordos do lado Governamental não integravam agendas relativas aos elementos provenientes da Segurança, muito menos discutiram o que quer que fosse relacionado com esses milhares e milhares de homens que acabaram por ser desactivados sem que houvesse sequer um documento que comprovasse os seus bons serviços ao Estado Angolano…

Essa foi a primeira fronteira do Cuito e os homens da fronteira, aqueles que defenderam a soberania em muito difíceis condições e conjunturas, são merecedores de reconhecimento por parte de todos os angolanos.

A intensidade dos combates foi de tal ordem que os mortos eram enterrados nos quintais e a água era conseguida com as cacimbas (poços) abertos nos mesmos quintais.

Para comer, muitos tinham que romper as linhas que cercavam a cidade e antes da aurora arrancar, os alimentos disponíveis nos campos circundantes, regressando às suas trincheiras.

Apesar de terem sido desactivados sem sequer merecer um documento, sem terem qualquer suporte e apoio, votados ao abandono, muitos elementos das Forças Especiais participaram por sua livre vontade e iniciativa na batalha integrando o lado governamental e foram muito importantes na resistência que o Estado Angolano ofereceu a Savimbi no Cuito.

II - A segunda fronteira é a que se faz sentir no presente, aquela que marca o início da reconstrução sobre as feridas e as cinzas do passado com os olhos postos no futuro.

O Cuito foi deixado praticamente em escombros por que as linhas de contacto entre as forças estiveram dentro da cidade, pelo que agora subsiste o desafio de ultrapassar o passado, vencendo traumas, preconceitos e reconstruindo.

O que tive a oportunidade de constatar, é que apesar de tudo se está a superar as expectativas no que diz respeito à recuperação de infra estruturas e estruturas, com o equipamento administrativo e social a merecer uma atenção prioritária.

A capital do Bié está limpa, bastante funcional, as escolas estão a abarrotar de alunos e, apesar de ser tanto o que há a realizar na agricultura e na indústria, há sinais de empreendimento nos mais diversos níveis sociais, esbatendo-se os desequilíbrios humanos, que são muito mais palpáveis em Luanda.

No que diz respeito aos alimentos, uma parte dos frescos é já de produção local (carne, hortícolas, grãos e fuba).

Impactos de outras culturas existem e tive a oportunidade num artigo anterior, de destacar o emprego disseminado de motorizadas de baixo custo de origem asiática no sistema preferencial de transporte de pessoas, coisa que nunca existiu em tal escala mesmo em cidades como Benguela, onde a bicicleta foi sempre rainha.

Estive agora numa das posições dentro do Cuito muito próximo do Palácio Governamental, que marcaram a divisória entre as forças em combate em 1992: dum lado está um prédio inteiramente recuperado, que ainda hoje é a maior construção da cidade, do outro está o esqueleto dum edifício em escombros ainda por recuperar e com evidentes marcas dos combates.

Por toda a cidade ainda há alguns edifícios por recuperar, mas têm dono que só não se conseguiram meter em obras por que estão descapitalizados.

Ao aproximarmo-nos do décimo aniversário do Acordo de Luena, que ocorrerá no próximo ano, a maior parte da estrutura do Cuito está recuperada, a funcionar de forma satisfatória, com a cidade indiciando vontade de crescer e de viver.

O Caminho de Ferro de Benguela já começou a recuperar os troços dentro da Província: o novo assentamento da linha, que será feito do Lobito à fronteira, já entrou nas áreas do Município do Chinguar, podendo até ao final do ano abranger os troços a leste, pelo menos até à ponte sobre o rio Cuanza.

Quando os comboios começarem a circular, um novo impulso será dado ao planalto central do país e às comunidades ao longo da linha, com reflexos também, como é óbvio, nas capitais Provinciais do interior, cidade do Cuito incluída.

Até 2015 a segunda fronteira estará consolidada, com particular realce para a reconstrução e a caminho duma relativa estabilidade emocional e humana, apesar da lógica capitalista que se impôs ao país com tantos desequilíbrios.

III - A terceira fronteira é talvez a mais complexa, mas a mais decisiva, por que ela envolve inteiramente a componente humana, integrando questões históricas, sócio-políticas, económicas e até psicológicas.

As próprias Forças Especiais são disso exponentes: recrutados pelo MPLA nas horas difíceis do “parto” da Independência, sendo os primeiros em muitos combates no âmbito da “almofada amortecedora” contra a coligação Botha-Savimbi, heróis anónimos da batalha do Cuito, os antigos efectivos interrogam-se, por que são reconhecidamente dos últimos a beneficiar com dignidade dos frutos da paz possível que se ergue sobre as cinzas.

Foram muitos os que ficaram pelo caminho, a começar no seu primeiro comandante, Leite, foram muitos os sacrifícios, mas foi esse cimento que deu consistência à sua resistência moral, mesmo em condições tão adversas como aquelas de 1992, quando desactivados não tinham a obrigação perante o próprio Estado que “dar o litro” por ele.

Da boca desses efectivos, pude constatar, não há ressentimentos pelo facto de tantos que estiveram nas trincheiras contra Angola, terem sido de há dez anos a esta parte beneficiários desses frutos, antes deles.

Pelo contrário, eles estão satisfeitos pela paz possível, apesar da sua “travessia no deserto” e, desse modo são a prova de que é possível estabelecer pontes entre a vocação socialista do passado e o que se pretende no quadro do socialismo democrático que não abdique de enquadrar o homem como prioridade.

Eles confirmam que a sua resistência que faz parte da resistência de muitos mais, está no sentido de criar benefícios para todo o Povo Angolano e não em benefício de grupos, por que, conforme dizia Agostinho Neto, “o mais importante é resolver os problemas do povo”.

Para eles, socialismo, mesmo o socialismo democrático, só poderá ser realizável se a prioridade for efectivamente o homem, geração após geração, estabelecendo a corrente a partir do passado histórico e enfrentando as rupturas quando houver que as enfrentar!

A construção da paz, na fronteira humana, só é exequível com a batalha das ideias e com as acções que venham a beneficiar todo o Povo Angolano!

O patriotismo desses combatentes é inquestionável, mas a primeira barreira surge, nesta terceira fronteira, de quem ou pretende fazer esquecer a história, ou de quem a quer contar de acordo com seus próprios interesses ou conveniências.

Entre estes que perfilham este tipo de opções, estão desde tecnocratas de última geração, inteiramente vocacionados às políticas de “mercado”, até a alguns membros do próprio MPLA que sempre tiveram aversão às “linhas da frente” e agora são os primeiros a beneficiar das conjunturas de ausência de tiros e impregnadas com a lógica do capitalismo com políticas de “portas abertas”.

Muitas narrações aliás das batalhas que foram travadas em Angola, estão propositadamente a esquecer do seguinte, na esteira do abandono a que foram votados os efectivos da Segurança do Estado: foram muitas vezes oficiais que pertenciam a essa Instituição que, pela via de reconhecimento, ou pela via da contra inteligência, obtinham os dados indispensáveis para a actuação das FAPLA e por isso mesmo é justo em muitos casos questionar se algumas narrações estão de acordo ou não com o que se passou realmente.

Foi esse o exercício que eu fiz em relação ao que escrevi sobre a batalha do Cuito Cuanavale, cuja parte inicial, a frustração de Mavinga, que resultou em pesadas perdas humanas para Angola, suscita questões sobre as quais ainda não há respostas.

Estas questões são tanto mais sensíveis quanto algumas correntes consideram os efectivos da Segurança do Estado como “funcionários”, quando de facto eles estavam, por imperativos da luta, entre os muitos que não fugiram às primeiras linhas.

Os equilíbrios que perfazem uma paz com justiça social, uma paz socialista que não ponha em causa a democracia, antes pelo contrário a aprofunde no sentido da cidadania e da participação, fazem parte da resistência daqueles que não caem na tentação do capitalismo de tendência elitista que alguns poderosos tentam introduzir em Angola após as refregas.

Aqueles que perfilham o sentido da vida do movimento de libertação não podem nunca esquecer que “o mais importante é resolver os problemas do povo”, efectivamente de todo o Povo Angolano, independentemente de origem, raça, crença, ou de filiação política – esse é o único caminho possível que dá continuidade aos esforços dum MPLA que antes se constituiu em vanguarda e sobre o qual recaem as responsabilidades de vencer todas as fronteiras!

A terceira fronteira é um dos principais desafios presentes e futuros para o MPLA, restando ele demonstrar se está ou não à altura humana de enfrentar esse desafio.

Para lá caminha, dirão alguns, mas perante riscos e desequilíbrios, perante um foço de desigualdades que cresce imparável, os realistas confirmam: “ver para crer como São Tomé!”


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