Dowbor, que lutou
contra a ditadura militar, mostra como a desigualdade social fizeram parte do
modelo adotado pela ditadura e como o Brasil vem mudando.
Ladislau Dowbor,
para o Blog do Zé Dirceu – em
Carta Maior
A relação entre as
transformações do Brasil nas últimas duas décadas e a luta para superarmos a
herança nefasta de 21 anos de ditadura militar é o tema da entrevista concedida
ao Blog do Zé pelo economista Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP.
Dowbor, dentre os mais atentos observadores e analistas da cena política e
econômica brasileira, que não apenas viveu o período militar, mas lutou
contra a ditadura, mostra como a desigualdade social e regional fizeram parte
do modelo adotado pela ditadura militar. Destrincha o milagre econômico e
aponta o que estava por trás da máxima daqueles anos “deixar o bolo crescer
primeiro, para depois distribuir”.
No alto de sua experiência em consultoria para as Nações Unidas e outras
entidades, além de diversas passagens pela máquina pública, tanto no Brasil
como no exterior, Dowbor alerta para a inconsistência das análises econômicas
que atualmente pululam na mídia. Didaticamente, ele mostra o caminho: “É
preciso fazer a lição de casa”, ou seja, o trabalho do economista: procurar os
números, analisar os dados, comparar, checar…
Em seu site,
www.dowbor.org, vocês podem
encontrar e baixar os trabalhos do professor Dowbor. São mais de trinta anos
destinados à economia e ao esforço de traduzi-la para um conjunto cada vez
maior de pessoas. Seu mais recente trabalho, “Os Mecanismos Econômicos” (
confira
a íntegra aqui), mostra exatamente como funciona o sistema econômico e
porque interessa a alguns setores que esses mecanismos permaneçam desconhecidos
pela maioria da população.
Acompanhem a entrevista:
Uma das coisas que exploraram e usaram de pretexto para dar o golpe é que a
inflação do governo João Goulart, o Jango era altíssima. Depois, durante a
Ditadura, em longos períodos, tivemos inflação altíssima…
[ Ladislau Dowbor ] Em seus trabalhos, o Celso Furtado deixou muito claro
que a inflação é um mecanismo de transferência de recursos. De forma geral, dos
pobres para os ricos. Mais especificamente, das pessoas que têm renda fixa para
os que têm renda variada. Uma empresa cuja matéria prima teve seu preço
aumentado, acaba aumentando seu preço de venda. Ela tem formas de acompanhar a
evolução da inflação. Um banco, se passa a captar dinheiro com um preço mais
alto, ele joga isso nos juros. Eles têm como repassar o processo inflacionário
para a frente. Agora, quando a inflação bate no trabalhador, ele fica esperando
o reajuste salarial. Só que ela é empurrada durante todo o mês. Então, quando
ele recebe o pagamento, na semana seguinte, o salário já vale muito menos.
Os assalariados, os aposentados e os pequenos produtores, que não têm como
passar o preço para frente acabam perdendo a capacidade de compra que é
transferida para as elites. Em particular para os bancos que criaram todo um
sistema de aplicações de alta rotatividade. Neste sistema, eles aplicam o
montante que o depositante deixa no banco. Com isso, os correntistas estavam
perdendo o seu dinheiro e os bancos não. Todo processo de inflação se
constituiu na transferência de concentração da renda nas elites. É importante
pensar a inflação assim, porque as pessoas dizem “os preços subiram”. Inflação
não aparece, de repente. Alguém subiu os preços para ela existir. E são esses
grupos que sobem os preços, em particular os mercados financeiros, que jogam
com a inflação como uma forma deles conseguirem reforçar a concentração de
renda.
Isso é tão enraizado na cultura das elites brasileiras que em 1993, com o Plano
Real, quando se quebra a inflação, foi feito uma troca: os bancos pararam de
ganhar o que vinham obtendo com a inflação e passam a ganhar com os juros com
duas vertentes: com os juros comerciais e com a taxa Selic. Apresentar juros
ao mês é uma desonestidade
Tão alta e constante elevação dos juros, chega a ser, então, uma desonestidade?
[ Dowbor ] No caso dos juros comerciais, as pessoas não se dão conta, até
porque não conhecem os juros internacionais e do resto do mundo. Só para citar
alguns exemplos. Houve um escândalo nos EUA porque eles estavam cobrando 16% de
juros ao ano no cartão de crédito. No Brasil o índice é 238% ao ano. O juro é
calculado ao ano. Apresentá-lo ao mês, como ocorre no Brasil, é uma
desonestidade, porque você esconde que ele é cumulativo. A pessoa pensa “é só
3%”. Eu sou professor da PUC-SP. Ela me paga no Santander e o cheque especial
aqui no Brasil é de 160% ao ano. Agora, lá na Espanha, o correntista do
Santander tem o direito de entrar no cheque especial até 5 mil euros, por seis
meses e com juros zero. Isso é lógico. Como as pessoas deixam ali um dinheiro
não aplicado – mas que o banco aplica – se o correntista entrar um pouco no
vermelho, as coisas se equilibram. Existe uma lei para isso.
De certa maneira, o processo de concentração de renda nas mãos das elites (dos
rentistas, principalmente aplicadores financeiros de diversos tipos), garantida
pelo sistema da inflação, acentuada em 1964, se manteve por meio do sistema dos
juros dos bancos comerciais a partir de 1993, quando entra o Plano Real.
Basicamente hoje isso está na faixa de 60% ao ano para pessoa jurídica e 110%
ao ano para pessoa física. A média do que se paga aqui no Brasil ao mês é o que
se paga no resto do mundo ao ano. Em outras palavras, temos uma gigantesca
transferência de recursos dos produtores, dos assalariados, das empresas
produtoras para os intermediários financeiros, os rentistas.
E via a alta taxa SELIC?
[ Dowbor ] A outra via dessa transferência, além dos bancos comerciais, é
a SELIC. Quando o Lula assume em 2003, a taxa SELIC estava a 24,5%, risco zero e
liquidez total. Eu coloco a minha poupança no banco, ele usa esse dinheiro e me
paga 8% ao ano. Mas, ele pega esse dinheiro e compra títulos do governo. O
governo está pagando ao banco 24,5%, risco zero. No governo FHC a SELIC chegou
a 46% ao ano. Mas, de onde o governo tira esses 24,5% para pagar? Ele tira dos
impostos. Da minha aplicação, o banco me paga 8% ao ano, mas tira 24,5% do
governo. Isso é uma transferência de renda que funciona atualmente, chegando à
ordem de R$ 150 bi/ano transferido dos nossos impostos para pagar os bancos.
Eles acabaram com a
CPMF que era um imposto razoável e eram os bancos que pagavam, porque eles
fazem as transações financeiras, os demais pagavam pouco. Acabar com a CPMF foi
uma forma de absolver os bancos dos impostos que chegava a R$ 60 bi. A SELIC
chega a R$ 150 bi ao ano, é dinheiro dos nossos impostos transferido para os
intermediários financeiros. Além disto, cobram juros exorbitantes, basicamente
a mesma taxa ao mês que no mundo se paga ao ano. A isto temos de acrescentar os
crediários comerciais, com os juros que eles obram, tipicamente de 100%. Pensem
no exemplo das que têm dedicação total a nós. Tipicamente, um fogão que sai a
R$ 200,00 da fábrica, eles vão pagar 40% de imposto, e vão ganhar bem mesmo
vendendo à vista, cobrando por exemplo R$ 420 a vista. A prazo sai R$ 820,00. O
consumidor está pagando $820,00 por um fogão que sai a R$ 200,00 da fábrica. É
na venda a prazo, com juros exorbitantes, que se faz realmente o lucro. É mais
uma atividade de intermediação financeira do que prestação de serviços
comerciais.
Existe uma máquina de intermediários que drena as capacidades produtivas, tanto
por reduzir a capacidade de investimentos dos produtores, como de obtenção por
parte da população. Esse era o sistema contra o qual o João Goulart queria
tomar medidas – estava em suas propostas de reformas de base. Foi o sistema que
a ditadura militar reforçou mantendo a inflação e é o sistema que continua no
tripé juros dos bancos / juros dos crediários / e taxa SELIC. Você pode me
perguntar, mas por que esse negócio funciona? Funciona por uma razão muito
simples: porque ninguém entende o sistema financeiro. Tanto isso é verdade que
o Joseph Stiglitz, que foi economista-chefe do Banco Mundial, ganhou um prêmio
Nobel porque ele mostrou como funciona. Mostrou esses mecanismos com base na
assimetria da informação.
Vamos supor que você tenha um dinheiro e queira fazer uma aplicação. Você chega
no banco e vai perguntar para o gerente de crédito no que deve aplicar. No
final das contas, vai acabar fazendo o que ele achar. Você não acha nada.
Com Lula, o Brasil dá uma guinada
No regime militar, havia arrocho salarial e a máxima “o bolo precisa aumentar
para depois dividir”. A partir do governo Lula, com o aumento dos salários
acima da inflação, especialmente do salário mínimo – política consagrada por
aquele governo – houve uma mudança?
[ Dowbor ] A partir do governo Lula, pela primeira vez, o Brasil teve uma
guinada. O conceito de arrocho salarial está baseado em uma visão de economia
que não se aplica mais. Todos os avanços tecnológicos na área produtiva hoje se
baseiam no pouco que tivemos de investimentos nas áreas sociais. Quando uma
empresa contrata um jovem engenheiro de 25 anos, esse rapaz representa 25 anos
de investimento social. É uma pessoa que vai ajudar o país a desenvolver
atividades sofisticadas. Se não tivermos esse investimento no homem – no conjunto
de setores que tornam a pessoa efetivamente capaz de produção – nenhuma área
funciona e você não tem bolo nenhum. Nós aumentamos a capacidade produtiva e
vimos o tamanho do déficit no social, porque não se investiu de maneira
equilibrada nos processos produtivos diretos. Ou seja, no vetor que faz
funcionar o conjunto da máquina produtiva – os trabalhadores, as pessoas.
Nós tivemos uma modificação profunda a partir do governo Lula. Isso é discutido
pelo Guido Mantega e por toda a equipe econômica. E a mudança não é só no
Brasil, em termos de teoria economica. Estou falando também do Amartya Seen
(Nobel de Economia em 1998), no conjunto da teoria econômica das Nações Unidas.
Não é fazer o bolo e distribuir. Mas, primeiro, distribuir para poder fazer o bolo.
Nada gera mais capacidade produtiva do que investir nas pessoas
Fazer distribuindo?
[ Dowbor ] Mais do que isso. Há um relatório da Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL, da ONU), de primeira linha,
A
Hora da Igualdade , que hoje orienta nosso continente. Ele mostra que
os países que investiram nas pessoas, na educação, na saúde, na cultura etc,
foram os que mais se desenvolveram e não o contrário. A explicação é que o
mecanismo econômico que todos chamavam de “gasto do Estado” nas pessoas é, na
verdade, investimento. Investimento no homem, no trabalhador.
Nada gera mais capacidade produtiva do que investir nas pessoas. O Japão, a
Coreia, a China seguiram esse caminho. Existe um filme muito interessante
chamado Os Caminhos da Escola, de 50 minutos, sobre o sistema educacional de
Xangai. Lá, existe um professor para cada dez alunos. Eu visitei a China várias
vezes. Agora, pergunta: o que é para uma professora aqui no Brasil tentar
manter 40 moleques quietos numa sala de aula? Você tem um outro conceito, outro
nível de importância para a educação lá.
O que significou o milagre econômico, na prática?
[ Dowbor ] Essa ideia de “crescer” do período da ditadura casava
muito bem com os interesses da elite de abocanhar mais dinheiro, mas não
fechava o ciclo. A produção como um investimento nas pessoas faz parte de um
circulo completo, porque sem esse investimento não se aumenta a produtividade.
O resultado é que você teve um milagre econômico, mas basicamente de
multinacionais que vieram aqui produzir para as elites. O que se produzia na
época? Automóvel, televisão, geladeira. Os apartamentos para a classe média e a
classe média alta. Isso casava bem com o que foi o regime militar. A
concentração de renda era necessária para eles para expandir o mercado, porque
eles trouxeram para um país pobre produtos que eram generalizados nos Estados
Unidos. Só que esses produtos não estavam dentro da capacidade de compra dos
mais pobres. A maneira de você expandir o mercado para bens relativamente
sofisticados era concentrar a renda. Daí que se aumentou essa bolha de classe
média e, até hoje, a gente se sente nela. Mas, isso reforçou a elitização e
quando se preencheu a bolha de prosperidade, todo o sistema caiu de novo.
O sistema só foi
retomado, efetivamente, a partir do governo Lula. O povo fala do Bolsa Família,
mas muito mais importante foi o aumento sistemático do salário mínimo. Nós
tivemos em 10 anos, um aumento de compra efetiva da ordem de 60%. Isso é
gigantesco para quem está lá embaixo. Um pouco de dinheiro embaixo gera muita
transformação. Esse mesmo dinheiro em cima não muda nada. O fato do dinheiro
ser muito mais produtivo quando vai para a base da sociedade é uma clareza
desse processo que tivemos apenas nos últimos 10 a 15 anos.
O Joseph Stiglitz (o Prêmio Nobel de quem ele falou acima) disse sobre o
Brasil: “não só fizeram, mas mostraram que dá certo”. Saiu recentemente um
estudo de indicadores de progresso social, da Universidade de Havard, que não é
nada de esquerda, mostrando os avanços do Brasil. Na realidade, não tem muito
mistério. Você amplia a base, faz uma pirâmide de base muito mais ampla, gera
um mercado muito mais amplo, aumenta a escala de produção, de custos unitários
e gera uma dinâmica de crescimento com mercado interno, inclusão social e
impactos concretos.
Falas como essa do Stiglitz e tantas outras acabam não ganhando o devido
destaque. Onde as pessoas podem procurar informações?
[ Dowbor ] Nós temos agora uma pesquisa de fundo realizada em 2013,
o
Atlas Brasil 2013,
que trabalhou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de todos os 5.565
municípios brasileiros (
confira a
íntegra). A pesquisa tem uma escala inter-institucional que não permite
maquiagem de cifras. Ela é das Nações Unidas, IBGE, IPEA e Fundação João
Pinheiros de Minas Gerais. Todos esses órgãos se associaram, participaram do
seu levantamento. Eu participei de reuniões nesse processo e garanto que, pela primeira
vez, nós temos uma imagem correta de IDH agora. E, até para que ninguém venha
dizer que são cifras do PT ou qualquer bobagem do gênero.
A gente pegou como intervalo de análise 20 anos – entre 1991 e 2010 – e os
dados são impressionantes. Em 1991, nós tínhamos 85% dos municípios brasileiros
classificados com IDH muito baixo. Isso significa, abaixo de 0,50. Uma situação
catastrófica em 85% dos municípios brasileiros. Em 2010, são apenas 32
municípios nesta situação, ou seja, 0,6% da totalidade.
Nesses 20 anos, o
aumento de esperança de vida foi de 9 anos. Isso é gigantesco. Passamos de uma
média de 65 anos de esperança de vida (em 1991) para 74 anos. Isso significa
que o Brasil, o brasileiro, em duas décadas, ganhou 9 anos. Qualquer um que
disser que o país está em crise está falando uma besteira monumental de quem
não fez lição de casa. Ou seja, simplesmente, não viu os números.
Vários outros indicadores provam a melhora. Por exemplo, a população brasileira
de 18 a
20 anos, com curso secundário completo, passou de 13% para 41%. Isso também é
gigantesco. Claro que ainda é muito pouco, mas o ponto de partida era
dramaticamente baixo. É bom lembrar que a ditadura não investiu na área humana.
Estamos pagando o preço disso até hoje. O avanço educacional e de esperança de
vida, só para citar exemplos, indicam um resultado de fatores aí, como aumento
da cobertura do sistema de vacinas, saneamento, acesso a alimentação para as
crianças etc. Essas coisas impactam.
A média de moeda estável de aumento da renda per capta familiar foi de R$
346,00. Em uma família de 4 pessoas, isso significa ter mais R$ 1 mil por mês.
Significa poder comer carne, ir ao cinema com as crianças. Isso tudo se soma
com os números do governo. Foram tiradas da miséria 36 milhões de pessoas pelos
vários programas sociais dos governos Lula e Dilma Rousseff.
Isso a partir de 2003, primeiro ano de governo Lula?
[ Dowbor ] Sim, a partir de 2003, (esses programas) se aprofundaram
muito. E eu digo isso com muita tranquilidade, porque a Ruth Cardoso (falecida
esposa do presidente FHC), no tempo do governo de seu marido, pediu para eu dar
uma assessoria naquilo que ela chamava de Comunidade Solidária. Dei, foi uma
atividade não paga, algumas vezes por ano e eu não me fiz de rogado. Dei os
conselhos que precisava dar para o interesse do país. Quando começa o governo
Lula, nós tínhamos 60 milhões de pessoas – na ordem de grandeza, 1/3 da sua
população – sem carteira de identidade, conta bancária, endereço postal. Enfim,
60 milhões de brasileiros não existiam para a administração pública.
Tanto que foram necessários dois anos para que o governo pudesse chegar até
toda essa gente, identificando e cadastrando. Só nesse investimento do
cadastro, foram incluídas 60 milhões de pessoas na cidadania. Em termos de
Bolsa Família, isso é muito mais do que transferência do dinheiro, até porque o
programa é condicionado a vacinas, educação etc.
Na realidade, a partir desse cadastro foi possível um conjunto de outros
programas que passaram a se enraizar a partir deste conhecimento. Um exemplo é
o Luz para Todos que levou eletricidade para quem ainda não tinha. Você puxou
60 milhões de excluídos e isso gerou uma base política muito forte que
permitiu, inclusive, a reeleição do Lula e a eleição da Dilma. Até porque, por
mais que as elites e a classe média gritem, por mais que a mídia distorça as
coisas, a base da população se baseia no concreto, no bife que agora consegue
comprar.
Avanço no Brasil é gigantesco
O avanço no Brasil é gigantesco. Eu me irrito um pouco como as pessoas pensam o
Bolsa Família. Ou não estão fazendo a lição de casa ou estão de má fé. O
aumento do salário mínimo atinge cerca de 26 milhões de trabalhadores,
permitindo efetivamente aumentar o poder de compra e cerca de 18 milhões de
aposentados. O Bolsa Família atinge cerca de 50 milhões de pessoas. O Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) passou dos
ridículos R$ 2,5 bi para cerca de R$ 15 bi o orçamento do financiamento. Pela
primeira vez, o pequeno produtor começou a poder investir, a se desenvolver.
São cerca de 2 milhões de famílias. É muita gente. Há outros programas da maior
expressão, como o Territórios da Cidadania e o ProUni, que permite o acesso à
universidade para cerca de 1 milhão de moleques que não tinham esperança alguma
de entrar na universidade e outros.
O avanço se explica por um mecanismo que não é a bolha de prosperidade classe
média/elites, como era na época da ditadura, mas um embasamento do conjunto da
máquina econômica, da sociedade em geral. Essa rearticulação não é só puxar os
pobres para cima, mas também reduzir as distâncias regionais, as distâncias
raciais, as distâncias de remuneração entre os gêneros que continua sendo
precária – a mulher ganha mais ou menos 70% em média do salário de um homem
para fazer a mesma atividade.
Uma coisa interessante de se dizer é que como a gente pegou nessa pesquisa do
Atlas Brasil 2013, os anos de 1991
a 2010, apareceram as cifras do governo FHC e neles
houve fortes progressos também. Esses progressos se devem, essencialmente, ao
Plano Real. A inflação era uma punção tão forte na capacidade de compra da
sociedade em geral, que o Plano Real fez com que a década fosse muito positiva.
O que aconteceu com o governo Lula é que passou a existir uma sistemática, uma
política de Estado de inclusão que gerou emprego e aí a coisa adquiriu um ritmo
forte. Se olharmos duas décadas de Brasil fica claro: o país está mudando e
para melhor. Não dá para contestar isso, a não ser por motivações políticas ou
interesses específicos.
Na sua visão, como se explica então esses ataques contra o país?
[ Dowbor ] Respondo com o meu exemplo. Eu fiz a lição de casa. Peguei os
números no Ministério do Desenvolvimento Social. Os números estão ali, online,
qualquer um poderia, qualquer jornalista com um mínimo de consciência pode
fazer e ver como estão os projetos, seu andamento, a atualização física,
financeira. No site do Ministério há os contatos para quem tiver dúvidas. Isso
dá para fazer. São 149 projetos. Eu fiz esse tipo de avaliação durante muitos
anos para as Nações Unidas e sei o que são cifras reais e o que é maquiagem.
Até porque os números têm de bater. Eu não tenho dúvida: o movimento gerado no
Brasil é muito forte. Só cego não vê.
Eu pego e analiso os indicadores – Atlas Brasil 2013, PNADs, sínteses de
indicadores sociais do IBGE, e os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável,
um documento magistral que o IBGE vem produzindo.O Joseph Stiglizt, que não é
um cara desinformado, está dizendo “está dando certo”. Michael Porter
(professor de Havard) e o pessoal da Universidade de Havard também dizem “está
dando certo”.
Esse imenso ataque que estão fazendo, em parte, é por desinformação. Mas, em
grande parte, ele é feito por uma elite que quer resgatar os tempos de
antigamente. Por que aparece de volta uma Marcha da Família? A saudade dos
militares? “Eu era feliz e não sabia”? Além disso, a classe média tem força e
essa mídia que, no Brasil, pertence basicamente a quatro famílias tem como
perturbar e travar um processo de progresso que se constata.
Quais as heranças da ditadura?
[ Dowbor ] Uma das principais é que nas últimas décadas nós tivemos
deslocamentos profundos. O tipo de concentração de renda que as multinacionais
exigiam aqui no Brasil foi somente com o regime militar. Essa herança da
desigualdade permanece e isso apesar de uma década de uma política sistemática
de Estado, de se puxar o pessoal de baixo para cima, de fazer inclusão
produtiva, social etc. Nós continuamos sendo um dos 10 países mais desiguais do
mundo. Nós temos muito caminho ainda de inclusão, apesar de sentir-se que para
as elites e a classe média, nesse quesito, já deu, já chegamos ao máximo. elas
dizem: “Oh, meu Deus, essa gente está chegando e invadindo a nossa praia…”
Agora, quando nós pensamos nas multinacionais lembramos do setor
automobilístico etc. Com razão, mas a gente esquece o campo. A guerra das commodities pelos
grãos no planeta é muito forte. O Brasil tem uma das maiores extensões de terra
agricultáveis parada e com água, o que hoje é chamado de ouro azul. Contra a
reforma agrária se gerou tudo. O presidente João Goulart, o Jango, estava
propondo um mínimo de reforma agrária. Francamente, o agricultor não ter acesso
em um país que tem por baixo 160 milhões de hectares de terra agrícola parada é
um absurdo.
E o que é hoje a bancada ruralista? Ela é um sistema interligado com os
grandes tradersinternacionais – como Bunge, Cargilletc – que trabalham
para a exportação e pagam muito pouco imposto. Não há imposto para comprar
terra no Brasil. É uma baba comprar em grandes quantidades e o imposto
territorial é uma piada. Se você comprar no exterior vê a abissal diferença… Na
Europa por exemplo, se você tiver uma terra que não usa, o imposto é de um
tamanho tal que ou você vende ou produz. Por que isso é importante? Com o
massacre das Ligas Camponesas e a liberação geral dos jagunços no interior, ou
seja, com a generalização da violência no campo, você forçou violentamente a
expulsão do homem do campo. Isso gerou essa massa de miseráveis nas cidades que
temos de enfrentar até hoje. São Paulo, Recife etc. Foram pessoas expulsas do
campo que migraram para cidades controladas pela direita na época, onde só se
investia nas classes média e nas elites.Cidades que incharam, não é que
cresceram.
Agora, estamos em 2014. Você vai nas periferias e nas favelas e vê como as
pessoas ainda vivem. Está sendo feito todo um trabalho. Foi criado o Ministério
das Cidades no governo Lula, mas o que temos é ainda um imenso atraso. Nós
somos um país com 85% de população urbana. Nos anos 50, nós tínhamos 2/3 de
nossa população na área rural. Há poucos exemplos no mundo de êxodo rural por
expulsão do campo tão profundo e tão violento – porque foi muito mais expulsão
do que por atração das cidades. Essa é outra herança da ditadura.
Agora, esse
processo de urbanização e criação de periferias miseráveis em torno das cidades
é extremamente difícil de mudar, porque se enraízam estruturas de poder. Como a
indústria das drogas. O que aconteceu na realidade? Você jogou o rico e o pobre
e os aproximou compulsoriamente. Você tem uma reação dos ricos hoje. Eles
constroem suas ilhas, seus Alfavilles (um dos mais estritos e luxuosos
bairros-condomínios fechados de São Paulo), com controle e cercas elétricas,
tal como os senhores feudais com seus castelos e sua ponte. Isso é patológico.
É patológico, inclusive, para as crianças que nascem ali e têm medo do mundo.
Não conhecem as coisas.
Heranças trágicas
Além do exôdo rural forçado, quais outras heranças você citaria da ditadura?
[ Dowbor ] Nós temos outra herança maldita que é esse peso dos juros, a
taxa SELIC, o rentismo etc. que carregamos até hoje. E tem uma herança política
trágica que é a Lei de 1997 que liberou o financiamento corporativo das
campanhas eleitorais. A partir de 1997, com essa lei, as empresas podem colocar
2% do seu capital para financiar candidatos. Isso é trágico. Repito: 2% do
capital, não do lucro. O que é muito dinheiro. Com o financiamento das
corporações, você passa a ter uma bancada dos bancos, uma bancada dos ruralistas,
uma bancada das grandes empreiteiras. Eu te pergunto: cadê a bancada do cidadão?
Está na nossa Constituição, “o poder emana do povo e em seu nome será
exercido”. Corporação não é povo, a corporação é um instrumento econômico,
legítimo, mas não é povo. Com essa lei, gerou-se uma grande dificuldade para
você introduzir transformações no país, transformações extremamente fortes.
Além disso, tem uma dimensão que ninguém fala – imagino eu, por prudência – que
é a dimensão do Judiciário. Quando a gente olha o Judiciário, por exemplo, a
imensa expulsão de pequenos produtores durante o governo militar, com os juízes
regionais que em geral são das famílias dos grandes proprietários dali,
gerou-se uma grilagem generealizada e legalizada. Todo sistema de cartórios,
que levou a uma expropriação monumental, tem uma tradição de conluio do
Judiciário com esses grandes interesses. Daí você ter juristas de alta
relevância no país dizendo tranquilamente “a ‘revolução’ gera sua própria
legalidade”. Ou seja, você faz o que quer e declara o que é legal. Francamente…
Sem falar que a revolução a qual eles se referem é o golpe de 64…
[ Dowbor ] Não
é possível falar de revolução sendo que o golpe que o que o golpe fez foi
assegurar a continuidade de reforços em relação às elites. O sentido do golpe é
o de manter e aprofundar os privilégios e os desequilíbrios na base da força e
do porrete. A classe média é sempre muito barulhenta. Ela fica histérica. É
curioso o tipo de bobagens que se escuta e se lê. A gente estuda isso em outro
plano, que é a formação das pessoas, das visões sobre economia, sobre a
política. Quando se trata de proteger privilégios, a tendência das pessoas é
trancar completamente a cabeça e raciocinar com o fígado.
Todos esses dados que mencionei e outros que estão aí que atestam os avanços,
quando você vai mostrar, tudo isso não passa. As pessoas estão buscando
argumentos para dizer “não, isso não pode ser verdade”, “é tudo maquiagem”. As
pessoas se crispam na defesa dos seus privilégios. Há um economista francês,
muito interessante, o Delavoye, que afirma ser muito mais fácil tirar o
necessário do pobre, do que o supérfluo do rico. Essa é a tensão que a gente
enfrenta.
A ditadura teve grandes escândalos, mas o que ouvimos sempre é que não havia
corrupção naquele tempo, ou que depois dela, na redemocratização, na
democracia, foi muito maior. Por que isso?
[ Dowbor ] Dizer que há mais corrupção agora do que em outros tempos é,
simplesmente, uma bobagem. Quando você tem um regime de exceção no qual você
não pode denunciar, não pode falar as coisas, tudo fica enrustido. E, quando as
coisas ficam menos visíveis, uma série de gente gosta de dizer “não, nós somos
melhores”. Veja bem, foi o governo Dilma que criou em 2012, a Lei da
Transparência. Uma Lei que obriga todos a produzirem e divulgarem os seus dados.
Agora, a Lei da
Transparência vale para o setor público. Nós não temos uma Lei da Transparência
para o setor privado. Quando você fala em corrupção, as pessoas pensam em
política e em
políticos. Ninguém raciocina que você não tem corrupção do
político sem que ele receba dinheiro de alguém. Não existe apenas metade da
laranja. Eu publiquei um livro agora, pela Fundação Perseu Abramo, chamado “Os
Estranhos Caminhos do Nosso Dinheiro” (confira
aqui a íntegra) no qual eu analiso como os mecanismos de corrupção
funcionam no Brasil e no plano internacional.
No livro você detalha esse funcionamento também no plano internacional?
[ Dowbor ] Sim, porque com a crise, a partir de 2008, as fraudes dos
grandes grupos financeiros foram tão monumentais que, em diversos países, foram
feitos esforços muito grandes para puxar os números e descobrir o que estava
acontecendo. A crise desabou em cima da gente. Na época, inclusive, o (banco)
Lehman Brothers estava classificado pelos índices de cotação das agências de
risco como o Triplo A, ou seja, o máximo.
Por isso, o Zé Dirceu escrevia que essas agências não tem mais a menor
legitimidade, porque dentre outras razões, elas não previram, nem denunciaram
aquilo, aquela iminente quebra…
As pessoas não sabem que essas empresas (agências de risco) são pagas pelas
pessoas que elas auditam. E são apenas três.
As agências de risco?
[ Dowbor ] Sim.
Não são agências públicas, não é coisa pública. Elas são pagas pelo serviço. O
que faziam, por exemplo, com a Enron antes da Lehman Brothers? A equipe de
auditoria ia lá para ver os números, sentavam com os contadores da empresa,
aconselhavam “olha, melhora isso assim, aquilo assado”. Eles ganhavam como
consultores. Aí, depois, voltavam para a empresa para fazer a auditoria.
Com a crise, gerou-se um grande pânico e as cifras vieram à tona. Saíram coisas
muito interessantes. Por exemplo, os números dos paraísos fiscais. O PIB
mundial hoje é de US$ 70 trilhões. Mas, segundo a principal pesquisa, da Tax
Justice Network, dirigida pelo James Henry, ex-economista da McKinsey (uma
grande empresa), nesses paraísos fiscais existe entre US$ 21 trilhões a US$ 30
trilhões. E a estimativa é que o Brasil teria cerca de US$ 520 bilhões – quase
R$ 1 trilhão. O PIB do Brasil é R$ 4 trilhões, ou seja, estamos falando de 25%
do PIB brasileiro desviado para paraísos fiscais. Isso acontece por evasão
fiscal, corrupção, o que você quiser. Os diversos caminhos de desvio dos
recursos da sua utilidade social e da sua legitimidade são avassaladores.
E os mecanismos de desvios e fraudes aqui no Brasil são semelhantes aos
utilizados internacionalmente?
[ Dowbor ] São muito semelhantes, mas com algumas diferenças. Por exemplo,
os desvios de dinheiro através dos sistemas bancários na Europa e nos Estados
Unidos se dão mais por alavancagem. No Brasil, mais por taxas de juros. A
alavancagem é interessante. É bom explicar porque a maior parte das pessoas não
sabem. Por exemplo, se eu tenho a minha poupança no banco e eles me pagam 8%
sobre a minha poupança e aí se eles emprestam esse dinheiro a 20%, eles dizem
“estou emprestando a 20%, mas tenho de pagar 8% ao dono deste capital”.
Banco ganha emprestando o dinheiro que não tem
Como a pessoa não retira esse dinheiro, o que os bancos fazem? Eles emprestam
20% desse dinheiro para um cliente; mais 20% do mesmo dinheiro para outro; mais
20% para outro e assim por diante. É isso que se chama alavancagem. Todos os
bancos conhecem isso. Eu estudei na Suíça, onde se formam os banqueiros, e eles
diziam que a principal forma do banco ganhar dinheiro não é emprestando
dinheiro e ganhando com o spread entre o que custa para ele e o que
ele empresta, o que seria no nosso exemplo 12%. Não. O banco ganha dinheiro
emprestando o dinheiro que ele não tem (que é do cliente), com a alavancagem.
O Lehman Brothers, quando chegou a crise, tinha uma alavancagem de 31. Isso
significa que ele tinha US$ 10 bilhões em caixa, mas havia emprestado US$ 310
bilhões. E se todos os clientes, de repente, inventam de buscar esse dinheiro?
Aí eles diziam, “a gente empresta do Citbank”. O problema é que o Citbank
estava fazendo a mesma coisa e o outro banco idem. E e por aí vai. Estou
falando da alavancagem, mas existem outros mecanismos. O mercado de futuro, os
derivativos que permitem aos bancos emitirem direitos de opção de compra sobre
produtos, como se fossem moedas. Mas não são moedas, são apenas papéis que
circulam. Eles são muito usados aqui. Para você ter uma ideia, o PIB mundial é
de US$ 70 trilhoes e os derivativos emitidos pelos bancos já superam US$ 600
trilhões. É por isso que o pessoal da área econômica diz que é o rabo que abana
o cachorro e não o contrário.
Os produtores, os trabalhadores, os empresários efetivamente produtivos, todos
são prejudicados por esse sistema, porque ele gera apropriação pelos
intermediários. Os traders e todos os sistemas financeiros que foram
criados rompem qualquer lógica. Esse sistema, mundialmente aceito, de
financeirização da economia é o principal vetor do refluxo da igualdade. Nesse
sentido, um país como o Brasil está na contra-corrente, porque nós estamos
aumentando a base da nossa igualdade.
Mas, se o governo, se a presidenta Dilma perder a eleição em outubro, não vem
um retrocesso nessa usca pelo aumento da igualdade?
Sem dúvidas. Volta aquilo que havia anteriormente (antes dos governos do PT).
Veja a guerra das elites na América Latina. Basta observar o que aconteceu na
Venezuela, em Honduras, as tentativas no Chile, na Bolívia. Tirar o supérfluo
dos ricos é complicado. Agora, há um conjunto de produtores sérios. O fato de
se expandir o mercado externo melhorou muito, porque nós tivemos a criação de pequenas
e médias empresas em uma quantidade impressionante. Gente que responde a novas
demandas que estão aparecendo nas populações, que está comprando e gerando
pequenas empresas.
É importante dizer que o PIB não mede de maneira adequada o resultado. O PIB
não mede resultados, mas os esforços da economia. Mede, por exemplo, a
velocidade da máquina, mas não o que se faz. Por exemplo, se eu faço educação,
esse pessoal que hoje está entrando via ProUni vai se tornar produtivo daqui
uns anos, não agora. Hoje, nós estamos no esforço (de fazer, mas…), o resultado
vem lá na frente. O mesmo em relação às infraestruturas que estão sendo criadas
e que vão gerar capacidades. Agora nós estamos fazendo o esforço, o resultado
virá lá na frente. Isso não conta como investimento no PIB. Aí você escuta a
gritaria de que o PIB é pequeno. Mas, ora, 2% a 3% de crescimento de PIB ao ano
é razoável e você tem o menor desemprego da história. As pessoas não entendem
isso.
A Maria Conceição Tavares (professora, economista, ex-deputada) acabou de
publicar uma entrevista em que ela diz: “PIB, pibinho…? eu acredito nos
clássicos, emprego, elevação de salário mínimo, inclusão da base social e
investimentos” (
vejam
aqui a entrevista). A Conceição faz parte desse conjunto de economistas que
hoje estão afluindo muito rapidamente. A coisa é bem diferente.
Créditos da foto:
Blog Zé Dirceu