A
Procuradora-Geral da República (PGR) foi ao Parlamento apresentar a informação
anual sobre a Justiça no país mas não pôs o dedo na ferida. O documento, de 200
páginas, é uma lista de velhos problemas já de domínio público, uns mais
bicudos que os outros, os quais, pese embora aflijam sobremaneira a sociedade,
permanecem sem soluções à vista. Aliás, nesta sexta-feira (08), passa um ano do
assassinato do juiz Dinis Silica, crivado de dezenas de balas até perder a vida
na capital moçambicana. No seu informe, Beatriz Buchili passou ao lado deste
caso e, além de não ter trazido nenhuma novidade em relação ao assassinato do
constitucionalista Gilles Cistac, referiu-se a ele de forma superficial, e como
se fosse um desconhecido.
Beatriz
Buchili dirigiu-se, pela primeira, à “Casa do Povo” para falar da situação da
justiça numa altura em que a criminalidade se agrava, a caça furtiva ameaça
despovoar as reservas e os parques, os acidentes de viação continuam sem
freios, a corrupção prevalece na Aparelho do Estado e a instabilidade política
não permite saber para que lado o país caminha. Sobre este último aspecto,
caracterizado por um ambiente quase de cortar à faca entre a Renamo e o
Governo, a procuradora nem se pronunciou.
Ao
contrário do seu antecessor, Augusto Paulino, que em todos os seus informes se
“impunha” ao Parlamento, parecia um intocável e mandava recados duros para os
dirigentes de determinados sectores considerados mais problemáticos, mormente
flagelados pela corrupção, a procuradora falou sem comoção, parecendo estar num
país onde a vida do povo é linda de morrer. Ela não vestiu a capa de uma
guardiã da legalidade em Moçambique. Faltou-lha punho...
O
informe anual de Beatriz Buchili foram praticamente, diga-se, números e
palavras sem acções claras sobre como combater os velhos problemas que
inquietam a população.
Dinis
Silica, juiz de Direito no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, na Secção de
Instrução Criminal, foi morto, sem dó, num dia em que devia decidir sobre o
destino do empresário Moniz Carsane, mais conhecido nos meandros
socio-familiares por Manish Cantilal, indiciado de ser o mandante de quatro
sequestros, de dezenas que causaram terror em Maputo.
No
que tange aos raptos, a procuradora disse que, em 2014, houve 42 casos (contra
44 do ano anterior), dos quais a província e a cidade de Maputo registaram oito
e 14, respectivamente, contra nove e 31, em 2013, tendo sido instaurados 42
processos, 20 (igual número no ano passado) dos quais acusados, 18 julgados (14
em 2013) e 19 em instrução preparatória.
Beatriz
Buchili reconheceu que este tipo de crime é “cada vez mais eficiente e eficaz”.
Os protagonistas “recorrem a telemóveis para exigirem valores aos familiares
das vítimas” e é necessário “garantir o registo de todos os cartões de
telemóveis (...)”. Contudo, ela não disse de que forma o mal será combatido.
Segundo ela, é preciso elevar a capacidade de investigação da Polícia e
melhorar a sua articulação com os outros sectores, bem como com a sociedade.
Refira-se
que Tomás Timbane, bastonário da Ordem dos Advogados de Moçambique, censurou,
em Março último, o mau desempenho e a arbitrariedade que imperam na Polícia, e
recomendou ao Presidente Filipe Nyusi para que não se esquecesse do que
prometeu aquando da sua tomada de posse: o reforço do “papel das instituições
da Justiça e da Lei e Ordem para que o nosso povo deixe de viver ciclicamente
num clima de medo e de insegurança”, devido à criminalidade, que parece ter
feito o sistema capitular.
Timbane
indicou que “um bom lugar para começar” é na Polícia, onde “no ano passado
criticámos a violação à presunção de inocência, ao exibir detidos, que, com a
conivência dos órgãos de comunicação social, faz disso um espectáculo (...)”. E
“sem qualquer mandado detém cidadãos sem provas. Vemos detidos com sinais
claros de violência (...)”.
Tráfico
de drogas
No
tange ao tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, a PGR revelou
que em 2014 foram apreendidas 4.020.149 quilogramas de diversas drogas, das
quais 2.626.177 quilos incinerados. “O Aeroporto Internacional de Maputo
continua a ser usado como um dos pontos de entrada ou trânsito de
estupefacientes do estrangeiro, maioritariamente do Brasil e Paquistão”. Num
total de 394 processos-crime em conexão com estes casos, 348 foram acusados e
134 julgados, para além de 385 cidadãos detidos por tráfico e consumo ilícito
de estupefacientes.
Tráfico
de pessoas
Este
mal, de acordo com Beatriz Buchili, incide mais sobre as mulheres e crianças,
cujo principal destino é a África do Sul, e é um fenómeno complexo que
desassossega a sociedade. No ano em análise foram registados 38
processos-crime, contra 22 de 2013, sendo a província da Zambézia e a cidade de
Maputo os lugares com mais casos, 10 e sete, respectivamente.
Abuso
sexual
As
crianças continuam na mira dos estupradores. Em 2014 foram abusadas sexualmente
350 menores por pessoas na sua maioria familiares das vítimas. As províncias de
Nampula (55), Cabo Delgado (54), Gaza (36), Sofala (35) e a província e cidade
de Maputo, com 30 casos cada, são as mais problemáticas. Foram movidos 863
processos-crime contras os malfeitores, tendo sido acusados 631 e julgados 126
indivíduos.
Beatriz
admitiu que os casos de cópula forçada, sobretudo com as menores de idade,
podem extravasar os números por ela apresentados, na medida em que certas
ocorrências não foram denunciadas por “as vítimas temerem represálias” e outras
terem sido negociadas entre as famílias, “mediante o pagamento de dinheiro ou
obrigação de casamento com a vítima”, o que impõe “o envolvimento dos pais e
encarregados de educação na prevenção e no combate a estes crimes”.
Linchamentos
Em
2014, a justiça pelas próprias mãos saldou-se em 24 óbitos, tendo um número
significativo acontecido nas províncias da Zambézia (07), Tete (06) e Sofala
(03). As vítimas, segundo a PGR, foram espancadas ou esfaqueadas até à morte
por populares e até mesmo pelos filhos, alegadamente por prática de feitiçaria,
roubo, entre outras acusações.
Violência
doméstica
Foram
registados 23.659 casos de violência doméstica, em 2014, contra 23.151 em 2013.
Ao todo, 11.669 homens foram os mais afectados, 7.872 crianças, mormente
menores de 12 anos de idade, e 4.118 mulheres. Nampula, Sofala e cidade de
Maputo são as áreas com maior incidência, com 3.846, 3.197 e 2.780 casos,
respectivamente, tendo sido instaurados 350 processos-crime em todo o país.
Os
delitos que envolvem petizes, tais como maus-tratos, sobrecarga de menores
incapazes, castigos corporais, submissão a trabalhos perigosos, foram
perpetrados por pessoas próximas dos mesmos, devido à situação de dependência
ou de superioridade e por familiares.
Caça
furtiva
Em
relação à caça furtiva, que se agravou nas províncias de Maputo (14), Gaza
(25), Manica (12), Sofala (09) e Niassa (13), de acordo o informe da PGR,
ocorre o abate de espécies protegidas tais como rinocerontes e elefantes para
extracção de cornos e pontas de marfim para a sua comercialização. As redes
criminosas usam armas de fogo e viaturas de grande cilindrada.
Entretanto,
Beatriz não avançou outros dados sobre este problemas nem disse o que se está a
fazer para se evitar a extinção de paquidermes e rinocerontes. No terreno, há
uma aparente impunidade dos caçadores furtivos, que continuam a fintar os
fiscais ou se aliam a eles para despovoar as reservas moçambicanas. Aliás,
alguns polícias envolvem-se nestes acasos por ganância, uma vez que as redes
criminosas movimentam avultadas somas.
Acidentes
de viação
Em
2014, 2.040 pessoas morreram em 3.300 sinistros rodoviários (contra 3.197 em
2013). Na província e cidade de Maputo e em Nampula houve maior desgraça, com
822, 685 e 270, respectivamente.
Relativamente
a óbitos, Nampula registou 296, Maputo 233 e Sofala 221. A grande preocupação,
segundo Beatriz, são os atropelamentos que se saldaram em 1.595 casos, dos
quais 937 mortes.
A
sinistralidade rodoviária tem a ver com o “desrespeito das regras básicas de
segurança, e o comércio nas bermas das vias públicas”.
Combate
à corrupção
Neste
capítulo, Beatriz fez alusão a uma série de trabalhos realizados pelas
instituições do Estado com vista a refrear a situação e, apesar dos avanços
registados, “a corrupção é um mal que persiste” e ainda preocupa os
moçambicanos.
Uma
das coisas que a procuradora não disse é que, pese embora a introdução de
sistemas modernos de gestão pública e que devia assegurar um maior controlo,
ainda há agentes do Estado que continuam a delapidar o erário, sacando
balúrdios para uso individual e dos seus familiares, ou seja, enquanto o
Governo aperfeiçoa os mecanismos de fiscalização, os seus funcionários,
seniores e com cargos de chefia, aliam-se, vezes sem conta, aos seus
subordinados e com eles desviam fundos. O Gabinete Central de Combate à
Corrupção (GCCC) reporta mensalmente casos desta natureza.
No
ano passado, a PGR tramitou 096 processos, contras 876 de 2013, dos quais 597
de corrupção, 147 de desvio de dinheiro ou bens do Estado, 129 de peculato (72
processos em Maputo, 70 em Nampula e 28 na Zambézia), 28 de abuso de cargo ou
função e cinco de participação económica ilícita, tendo sido acusados 239
indivíduos e julgados 79. A cidade de Maputo, com 180 casos e as províncias de
Inhambane, com 124, e Sofala, com 101, foram as mais “corruptas”. Por
conseguinte, 294 funcionários foram expulsos e instaurados 541 processos
disciplinares.
Relativamente
à situação das cadeias, em 2014 havia pelo menos 14.985 cidadãos, dos quais
4.616 em prisão preventiva e 10.279 condenados. No total foram tramitados
61,075 processos-crime. Destes, 11.671 estavam pendentes e 49.404 deram entrada
em diferentes instituições da Justiça.