sexta-feira, 23 de setembro de 2016

UMA REBELIÃO NA INGLATERRA



Como Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista, está desafiando a mídia, as estruturas do velho Labour e o bom-mocismo para demonstrar que, em tempos de crise da política, a radicalidade é bem-vinda

Antonio Martins – Outras Palavras

No próximo sábado, dia 24, o Partido Trabalhista britânico fará uma nova eleição de seu líder. Todos os prognósticos indicam a vitória do rebelde Jeremy Corbin, atual ocupante do postos. Ele despontou há um ano embora não seja jovem (tem 67 anos), nem novato na política (tem sido eleito, desde 1982, para a Câmara dos Comuns).

Corbyn emergiu por desafiar a liderança acomodada e imponte do partido, que havia abandonado toda a velha tradição de luta por igualdade e direitos para as maiorias. Sustentou posições muito renovadoras. Provocou, em poucos meses, uma reviravolta na política britânica, obrigando os conservadores, no governo a recuar de algumas posições. É atacado diariamente pela mídia – inclusive pelo The Guardian, que muitas vezes tenta mostrar-se à esquerda.

Em 28 de Junho, Corbyn foi questionado por um voto de desconfiança emitido pela grande maioria de parlamentares de seu partido, interessados numa volta ao antigo status quo. Recusou-se a uma renúncia honrosa, que lhe foi proposta. Recorreu às bases do partido, que, tudo indica, reafirmarão seu mandato sábado. Vamos buscar compreender o que isso significa – também para o Brasil – num momento em que é preciso reinventar a própria esquerda.

Em 28 de Junho, Corbyn foi questionado por um voto de desconfiança emitido pela grande maioria de parlamentares de seu partido, interessados numa volta ao antigo status quo. Recusou-se a uma renúncia honrosa, que lhe foi proposta. Recorreu às bases do partido, que, tudo indica, reafirmarão seu mandato sábado. Vamos buscar compreender o que isso significa – também para o Brasil – num momento em que é preciso reinventar a própria esquerda.

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A história do Partido Trabalhista Britânico – o Labour – é importante por acompanhar as principais tendências políticas do Ocidente, a partir da segunda metade do século XX. Fundado nos anos 1890, o trabalhismo participou de alguns governos fugazes, antes da II Guerra. Mas foi apenas depois do conflito que exerceu o poder de forma estável.

Eram o que Eric Hobsbawn chamou de “anos gloriosos”. A hegemonia capitalista não chegou a ser ameaçada. Mas a existência da União Soviética, ainda que burocratizada, obrigava as classes dominantes a oferecer importantes concessões aos trabalhadores. O Labour soube tirar proveito desta brecha. Governou por dois períodos emblemáticos.

Entre 1945 e 51, o primeiro-ministro Clement Atlee estabeleceu uma política de “bem estar social do berço ao túmulo”. Assegurou Edução pública excelente para todos e criou o Sistema Nacional de Saúde, também público. Nacionalizou as ferrovias, a energia, as siderúrgias, as minas de carvão e o Banco da Inglaterra. Aceitou a independência da Índia e do Paquistão, desconstruindo o Império Britânico. Estas conquistas haviam criado consenso e foram mantidas mesmos quando os conservadores retomaram o poder, em 1951.

Já entre 1964 e 1970 e entre 1974 e 79, quando volta ao governo, o Labour estabelece o direito ao aborto, descriminaliza a homossexualidade e cria a Universidade Aberta. Mas aos poucos, a crise da social-democracia também o atinge. São tempos de estagnação econômica e de falta de criatividade política. Diante de défictis públicos e inflação crescentes, os trabalhistas – que tinha nos sindicatos sua principal base de apoio – arrocham salários.

Vivem uma série de conflitos internos que desembocará numa derrota eleitoral acachapante, em 1979. Quem os derrota é Margareth Thatcher, que liderará, tanto na Inglaterra quanto em todo o mundo, a contra-revolução neoliberal. Ao contrário do que ocorrera antes, todas as conquistas da era trabalhistas serão colocadas em xeque.

A tragédia do partido amplia-se, paradoxalmente, quando ele volta ao poder em 1997. Sob a liderança de Tony Blair, e sob a égido do “Novo Trabalhismo”, já está acomodado à nova ordem. Introduz reformas de mercado na Saúde e Educação. Impõe a cobrança de mensalidades nas universidade públicas. Ataca benefícios do Estado de bem-estar social. E pior: subordina-se, no plano geopolítico à política de guerra total de George W. Bush, presidente dos EUA, que começa com a invasão do Iraque. No plano local, isso refletirá em mais vigilância, ampliação dos poderes da polícia e restrições ao direito de manifestação. Em 2010, os trabalhistas perdem o governo. Em 2015, já sem poder e sem identidade, sofrem uma estrondosa derrota nas eleições gerais. O líder do partido, Ed Miliband, é forçado a reunciar.

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É neste contexto desolador que emerge a figura de Jeremy Corbyn. Quando ele lança sua candidatura à sucessão de Miliband, o fato é tratado como piada. Durante os anos decadentes de Novo Trabalhismo, Corbyn havia desafiado incessantemente a liderança do partido, votando 428 vezes contra sua orientação. Destacou-se, em especial pela oposição às guerras do Afeganistão e Iraque e, mesmo no partido do governo, ajudou a formar e liderou a coalização de movimentos sociais chamada Stop The War.

O próprio registro de Corbyn, na primeira candidatura à liderança trabalhista é obtido numa espécie de favor, por parlamentares que veem sua pretensão como quixotesca, porém simpática. Tudo muda, no entanto, em dois meses de campanha. As propostas radicais do pretendente rebelde mobilizam os membros do Partido Trabalhista. Em setembro, disputando contra três outros postulantes, todos solidamente ancorados na burocracia do partido, Corbyn obtém uma vitória esmagadora – 59,5% dos votos.

Eleito líder, ele não muda de discurso. Propõe ao Partido Trabalhista um programa de revisão radical das políticas neoliberais. Quer o fim das mal-chamadas políticas de “austeridade” – que cortam direitos sociais para manter os privilégios da oligarquia financeira. Defende a renacionalização dos serviços públicos e das ferrovias. Inova. Quando lhe perguntam de onde tirar dinheiro para isso, lembra que a Grã-Bretanha emitiu centenas de bilhões de libras para salvar os bancos, numa política conhecida comoquantitive easing. E pergunta: por que não um quantitative easing social, que injete recursos em infra-estrutura e garantia de direitos?

No plano mundial, rejeita a ideia de envolvimento da Grã-Bretanha nos bombardeios comandados por Washington na Síria. E, heresia suprema, opõe-se ao programa nuclear britânico, honrando sua história de ativista antiguerra e antinuclear.

Estas políticas, totalmente heréticas em face dos dogmas neoliberais, atraem a ira dos jornais. O público identifica o viés. Numa pesquisa recente, 51% dos britânicos disseram acreditar que os jornais e TVs distorcem deliberadamente o noticiário contra Corbyn, conta apenas 29% que não creem nisso.

Ao menos uma parte do eleitorado, porém, já não se deixa influenciar pela mídia. Sob a liderança de Corbyn, o número de membros do Partido Trabalhista dispara. Como mostra o gráfico. Em um ano, e depois de um longo declínio, a militância é o dobro do que era antes. Os novos ativistas são quase todos jovens, antes afastados da política institucional. O fenômeno sugere: a crise da representação é tão vasta que as sociedades tendem a buscar qualquer brecha que sirva para reconstituir a utopia – ainda que nos velhos partidos.

Mas as velhas estruturas não se sensibilizam nem diante de números tão eloquentes. Em 28 de junho, depois de várias tentativas anteriores, os parlamentares do Partido Trabalhista – em sua grande maioria defensores do “Novo Trabalhismo” de Tony Blair – decidem, por 172 votos a 40 proclamar um “voto de desconfiança” contra Jeremy Corbyn. Queriam que ele defendesse com entusiasmo a permanência da Grã-Bretanha na União Europeia – que foi rejeitada pelo eleitorado.

Mídia e parlamentares esperam de Corbyn o afastamento voluntário da liderança. Ele reage convocando os eleitores a se manifestar diante do parlamento. Depois, diz: “só sairei se derrotado pelo voto”.
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Na Inglaterra, ao contrário do Brasil, não são os parlamentares, mas o conjunto de militantes dos partidos que escolhe, diretamente, o líder da bancada. As eleições novas eleições, provocadas pelo desafio a Corbyn, serão sábado. Há, agora, um único oponente: Owen Smith, também membro da Câmara dos Comuns. No último fim de semana, até mesmo The Guardian parecia entregar os pontos e reconhecer que não será possível afastar o líder rebelde.

A velha mídia brasileira, tão incapaz de informar sobre grandes temas internacionais, parece ainda mais silenciosa neste episódio. Há razões para isso. Os jornais e TVs tupiniquins estão empenhados em demonstrar que o programa de contra-reformas de Michel Temer é inevitável, apesar de doloroso. O fenômeno Corbyn sugere o contrário: todas as saídas dependem de decisões e vontade política.

É como se, no Brasil, Dilma Roussef tivesse convocado a sociedade após as eleições para dizer que, em vez do “ajuste fiscal”, estava disposta a enfrentar a crise obrigando os ricos a pagar impostos, iniciando uma Reforma Política capaz de dar voz ativa à cidadania, quebrando o oligopólio da mídia, defendendo as terras indígenas, ampliando as relações com os BRICS, fazendo a reforma agrária.

Ainda mais importante: a rebeldia de Corbyn demonstra que a crise da velha política não é um beco sem saída. Será possível esperar algo semelhante no Brasil? Haverá, nos partidos de esquerda, gente disposta a abandonar o pragmatismo estéril das concessões sem horizontes? O que ocorre na Inglaterra – e ocorreu, em menor medida, nos Estados Unidos, com Bernie Sanders, mostra que há espaço para tanto. Só não se sabe é se haverá vontade política.


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