terça-feira, 20 de junho de 2017

ANGOLA | A “libertação nacional” frequenta Wall Street



Petróleo, principal riqueza nacional. No período de 1985 a 2010, a fuga de capital total de Angola é estimada em US$ 84 bilhões, aproximadamente 12% do PIB registrado no período.

As elites angolanas são corruptas. Mas é nas democracias ocidentais, sob a supervisão dos operadores do cassino financeiro global, que se mantêm e crescem as oportunidades para o roubo

David Sogge | Outras Palavras | Tradução: Isabella Alves Lamas

Angola é um país da África Subsaariana que vive uma situação paradoxal devido ao descompasso existente entre seu grande potencial econômico, proveniente principalmente da alta concentração de recursos minerais, e a miséria humana de ser um dos países mais desiguais do mundo. A sua história recente é marcada pela luta de libertação nacional, que teve fim em 1975 quando o país conquistou a independência de Portugal, seguida por muitos anos de uma sangrenta guerra civil. Ela opôs o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), guerrilha que se converteu em partido e está no governo desde então, e a Unita, outro movimento guerrilheiro, de tendência pró-ocidental e agora principal partido de oposição. Durante o período de guerra civil, a exploração de diamantes foi usada como mecanismo de financiamento dos esforços de guerra da UNITA, enquanto a exploração de petróleo offshore foi usada para financiar o lado do governo. O período pós-colonial, longe de romper com esse lógica de apropriação, apresenta importantes elementos de continuidade do saque dos recursos naturais angolanos, que agora se expressa através de uma “nova” roupagem. Neste artigo, o investigador David Sogge estabelece com muita clareza a ligação existente entre o enriquecimento das elites angolanas, o dinheiro proveniente principalmente do petróleo e a conivência de um sistema de privilégios das elites ocidentais. Uma peça fundamental para entender os paradoxos tanto da Angola contemporânea quanto do modus operandi da economia política internacional. (Isabella Alves Lamas, tradutora)
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“A ocasião faz o ladrão” é um velho ditado. Mas no caso de Angola, enredada no capitalismo globalizado, são os fabricantes das oportunidades offshore que saem impunes com a maior parte do saque.

A situação: Enriquecidos pelas receitas de exportação e sob o patrocínio e proteção de um grande homem há muito no poder, membros da camada de elite angolana asseguram para si privilégios através de autonegociações. Eles se apropriam da terra e de imóveis dentro e fora da lei e organizam monopólios comerciais para si mesmos e seus amigos íntimos. O Estado subsidia seus estilos de vida, fornecendo a eles prioridade no acesso à assistência médica, escolaridade e outros serviços. Eles saqueiam as riquezas do país e as canalizam para o exterior e não hesitam em usar a repressão explicita e oculta para manter o status quo.

Angola hoje? Sim, mas isso também descreve a Angola de ontem, particularmente a dos anos 1950 e 1960, as últimas décadas do período colonial. É claro que a situação em 2017 é diferente sob diversos aspectos. Por exemplo, a economia angolana colonial era muito mais diversa, uma vez que o país produzia grande parte da sua própria comida e até muitos bens de consumo. Se a compararmos com outras economias subsaarianas do período, esta tinha um enorme contingente de proletários assalariados e um grande número de agricultores africanos que usavam métodos avançados. No período de uma Angola pós-colonial, essas categoriais sociais em grande parte colapsaram, enquanto novos fenômenos – urbanização maciça, alfabetização generalizada, sistemas de comunicação – surgiram. Não obstante, instituições, práticas e atitudes que correspondem às da era colonial permanecem vivas na atual Angola, já há 42 anos uma nação soberana.

O ponto é que a má governança e a corrupção não são novidades. No entanto, como em muitos outros países, elas têm assolado Angola há gerações. Se não são nem novos e nem únicos, esses problemas requerem uma perspectiva ampla e de fora para dentro – sem perder de vista a atuação dos próprios angolanos, onshore, em busca de uma gratificação mútua com os atores, offshore.

A Vila de Potemkin

Externamente, Angola atende a muitos critérios normalizados de boa governança. A sua Constituição confere “direitos e liberdades fundamentais” a todos os cidadãos e estabelece ainda duas supremas cortes. Há um tribunal de contas e outros organismos de controle e equilíbrio (check-and-balance) como um ombudsman nacional. O governo autoriza, na verdade subsidia, uma série de partidos políticos de oposição cujo lugar no parlamento foi conquistado através de processos eleitorais competitivos, apesar de tendenciosos. Assim, Angola parece se qualificar em termos formais como uma democracia constitucional moderna. Porém, na realidade muitas dessas instituições são simulacros[1], palcos nos quais os rituais são executados “para inglês ver”, como diz o ditado da era colonial. É claro que nem tudo é confuso assim – por exemplo, camponeses venceram em tribunal contra poderosos fazendeiros – mas, a maior parte dos processos serve para firmar e legitimar um sistema oculto que beneficia os poderosos tanto dentro como, especialmente, fora do país.

Histórias de práticas desonestas e extrativistas executadas por figuras importantes, suas famílias e empresas privadas são reportadas regularmente em narrativas jornalísticas e acadêmicas sobre a Angola pós-colonial. Sendo tão abundantes, elas deixam de ser chocantes. No entanto, muitos têm trabalhado duro e assumido grandes riscos para trazer à luz estas histórias e buscar justiça. Figuras políticas da Angola independente como Filomeno Vieira Lopes, jornalistas intrépidos como Raphael Marques, acadêmicos experientes como Ricardo Soares de Oliveira, além de ativistas em casa ou na diáspora angolana contribuíram para a consciência pública. A consciência da desonestidade se acumula, apesar de um esforço vigoroso. Pense: leis criminalizando a divulgação de informações, processos judiciais, ameaças de acusação – para manter as evidências fora do alcance do olhar público. Membros da liderança e seus associados no exterior também as abafam sob o manto de uma produção de imagens embelezadas que envolvem empresas de relações públicas muito bem pagas e as principais empresas de mídia internacional. A repressão e a gestão da imagem podem influenciar alguns, mas é pouco provável que convençam muitos dos regularmente expostos a avaliações comparativas de desempenho político. Todos os anos, a Bertelsmann Foundation, o Electoral Integrity Project  e a Transparency International classificam Angola em termos de uma governança eficaz e efetiva. Exercícios vistos como menos eurocêntricos como os da Mo Ibrahim Index of African Governance usam métodos semelhantes. Em tais medidas, Angola nunca é o país mais delinquente do mundo, mas suas pontuações são rotineiramente ruins.

Avaliações

A maior parte dos fabricantes de indicadores e outros observadores focam no nível territorial, principalmente em Luanda. Eles veem corrupção, falta de transparência e autocracia e, normalmente, ainda contrastam o estilo de vida opulento das elites angolanas onshore com a miséria e a indiferença que são impostas aos pobres. O fracasso em proporcionar uma ampla base de prosperidade não é característica única de Angola, mas se sobressai em contraste com países como Etiópia e Ruanda onde, apesar de serem escassos em recursos naturais, governos autocráticos ofereceram benefícios para um número crescente de cidadãos.

No cenário mundial, o desempenho de Angola é exposto ao deboche. Porém não por todos. De fato, Angola não está mal classificada nas tabelas de desempenho elaboradas para os defensores dos “livres mercados” e investidores transnacionais. Ela pontua bem em termos de “Liberdade Comercial”, um conceito promovido por meio do Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation Index of Economic Freedom  e do Wall Street Journal. Nestes termos amigáveis às corporações, o desempenho de Angola melhorou desde 2005 e, a partir de 2017, está acima da média para a África Subsaariana. As suas políticas fiscais obtêm uma classificação melhor (isto é, mais favorável a pessoas e empresas de alta renda) que a maior parte dos outros países da África Subsaariana, enquanto o seu histórico de não ingerência do governo no setor financeiro e o respeito do governo pelos direitos de propriedade têm uma pontuação próxima à média subsaariana.

Em meio a essas opiniões que são tanto positivas quanto negativas, as elites ocidentais inclinam-se às positivas. Elas minimizam as críticas e enfatizam o progresso angolano em direção à práticas democráticas, ao respeito pelos direitos humanos e à transparência. Algumas pessoas que ocupam posições chaves são persuadidas. Uma pesquisa do Banco Mundial de 2012 com as partes interessadas nacionais e estrangeiras indicaram que 40% dos informantes de agências bilaterais e multilaterais observavam que Angola estava sendo “conduzida na direção certa”; 20% deles achavam que o país estava indo na “direção errada” e 40% declararam não saber. Os endossos implícitos ao regime angolano são por vezes misturados a observações críticas ou condescendentes em relação a ONGs e críticos dos meios de comunicação do regime. Os diplomatas ocidentais têm ouvido dizer que as percepções de fora sobre a corrupção não correspondem à realidade angolana. A equipe das instituições de Bretton Woods julgou como irrelevante a ideia de que a transparência dos recursos do petróleo poderia ser aprimorada caso Angola aderisse à Extractive Industry Transparency Initiative.

Lágrimas de crocodilo

Em resumo, a elite política e comercial pode publicamente demonstrar preocupação sobre a corrupção angolana e o fracasso em proporcionar uma base ampla de prosperidade, mas eles geralmente deixam por isso mesmo . Um reflexo padrão é a atenuação de lacunas ou abrigá-las sob um “manto de amor”. Figuras proeminentes da academia ocidental, homens de negócios e banqueiros fizeram acordos mutuamente benéficos com Luanda. São ouvidos cânticos de louvor toda vez que visitantes ocidentais de alto nível chegam em Luanda como, por exemplo, a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, em 2009, e a chanceler Merkel, em 2011, quando ocorrem encontros sobre assuntos militares (rotineiramente ofuscados por transações corruptas de armamentos, aeronaves e embarcações) e quando são organizados encontros especiais para líderes angolanos em Washington, Berlim, Davos e outros lugares onde as elites comerciais e políticas se reúnem.

O tom otimista é em grande parte uma função do interesse existente em como as elites angolanas “reciclam” os seus petrodólares. Fornecedores estrangeiros de bens e serviços trabalharam duro para explorar esta abundância de dinheiro proveniente de vendas presentes e futuras de petróleo e gás. Eles podem concordar que a economia angolana deve algum dia ser diversificada, mas preferem que esta continue desempenhando o seu papel habitual de exportadora de hidrocarbonetos e superávits financeiros e importadora de bens de consumo (incluindo comida) e bens de investimento. Para serviços, as autoridades, nas palavras de Ricardo Soares de Oliveira, “ostentam todos os consultores e empreiteiros que o dinheiro do petróleo pode comprar”, o que resulta em uma “cultura de consultoria” – um negócio altamente lucrativo que é mantido pelo subinvestimento no povo angolano. Para uma participação no mercado angolano anual de 15-20 bilhões de euros [entre 55 e 74 bilhões de reais], os fornecedores usam meios justos e sujos para influenciar aqueles que tomam as decisões sobre o que importar e de quem. Adicionalmente, os provedores de créditos e empréstimos reivindicam futuros petrodólares através de dívidas.

O corte dos 10%

São escassas as informações confiáveis sobre os fluxos de saída de Angola. Isso não é uma surpresa, uma vez que a maior parte das verbas, lícitas ou ilícitas, flui para jurisdições offshore: Ilhas Cayman, Antilhas Holandesas, Londres, Suíça – cujo principal argumento de venda é o segredo. Entretanto, por meio de formas de medição indireta, é claro que Angola sangra regularmente dinheiro proveniente da renda do petróleo. As rendas são benefícios financeiros acima dos lucros normais que seriam alcançados em um mercado “livre” ou perfeitamente competitivo. Em países do Atlântico Norte, uma legião de advogados, contadores e, é claro, oficiais públicos trabalharam por décadas na elaboração de leis nacionais e internacionais, sistemas legais e subsídios públicos favoráveis e que criassem oportunidades e incentivos poderosos para canalizar as rendas em mãos privadas – e, portanto, para longe de fins publicamente benéficos.

Pesquisas sobre fluxos que estão a entrar em jurisdições secretas offshore mostram que aproximadamente 8% das rendas habituais de petróleo, e algo como 15% das rendas de petróleo decorrentes de lucros inesperados e não planejados (crescimento repentino do preço do petróleo), distancia-se normalmente da média dos países exportadores de petróleo. Por isso, é plausível dizer que aproximadamente 10% da riqueza de petróleo angolana é rotineiramente saqueada e perdida para o país.

No período de 1985 a 2010, a fuga de capital total de Angola é estimada em US$ 84 bilhões, o que equivale a aproximadamente 12% do PIB médio registrado no período. Apenas a Nigéria, cuja fuga de capital foi de aproximadamente 313 bilhões de dólares [mais de um trilhão de reais], perdeu mais em termos absolutos embora, por representar 5% do PIB, sua perda tenha sido relativamente inferior à de Angola. Um economista sênior levantou a hipótese de que se Angola não tivesse registrado fuga de capital nesse período os rendimentos registrados teriam crescido a uma taxa de 8,3%, mas ao invés disso estes cresceram a uma taxa de 4,6%. Os custos para os angolanos – a perda de perspectiva para vidas mais plenas, saudáveis e produtivas – são praticamente incalculáveis mas, sem dúvida nenhuma, colossais.

Para onde vai o dinheiro?

As destinações das rendas evasivas do petróleo são segredos muito bem guardados. As classes políticas no exterior, particularmente nas democracias do Atlântico Norte, têm promovido controles frouxos sobre o movimento de capitais durante décadas, além de terem criado meios legais para ocultar sua propriedade. Isso é o que constitui a arquitetura de oportunidade para as elites angolanas. E quem foram esses arquitetos? Entre eles, estão lideres políticos da Europa de hoje. Frans Timmermans, o vice-presidente da Comissão Europeia, enquanto Ministro das Relações Exteriores da Holanda defendia vigorosamente a oferta de serviços financeiros holandeses para empresários (como os oligarcas ucranianos) em busca de esconder o seu saque offshore. O atual presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, enquanto alto politico em Luxemburgo remodelou a economia política desse país e o transformou em um dos principais paraísos fiscais e jurisdições secretas do mundo. Outros altos dirigentes europeus, particularmente do setor financeiro, também fizeram a sua parte – algumas vezes em colaboração direta com as elites angolanas.

Apesar de segredos protegidos aos mais altos níveis, as informações vazam. Por exemplo, quando Isabel dos Santos, que dizem ser a empresária mais rica da África, adquire negócios em Portugal ou em outros lugares, ela rotineiramente faz uso dos intermediários financeiros holandeses, empresas conhecidas como “caixa-postal”, que são encorajados e protegidos sob a lei holandesa. Baseado em muitos anos de pesquisa sobre Angola, o repórter investigativo britânico Nicholas Shaxson escreve: “Muitos bilhões desapareceram offshore através de empréstimos opacos sustentados pelo petróleo que foram canalizados para fora dos orçamentos normais do estado, muitos deles encaminhados por dois fundos especiais que operam fora de Londres”. Não é à toa que Roberto Saviano, especialista sobre a máfia italiana de Camorra, chamou o Reino Unido do “país mais corrupto do mundo”, ainda que no esquálido mercado de serviços sob segredo financeiro, este enfrente uma competição dura dos Estados Unidos, de Luxemburgo e da Alemanha.

Oportunidades legais e técnicas de desviar, armazenar e gastar montantes públicos oferecem incentivos poderosos para as elites angolanas – mas também para elites no estrangeiro. Desta e de outras maneiras – do mercado imobiliário à compra de armas – a riqueza angolana acaba nas mãos dos interesses dos ricos no exterior, onde esta pouco ou nada serve a qualquer finalidade pública. Os resultados do desenvolvimento dependem fundamentalmente dos incentivos voltados para as elites. Os incentivos provenientes do offshore pressionam o desenvolvimento angolano em direção a resultados que não são mais sustentáveis do que os da ordem colonial.

O que pode ser feito?

No início do período pós-colonial, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) prometeu “servir aos interesses das massas”. Os ecos dessa ambição foram ouvidos 37 anos depois, quando o mesmo partido prometeu “distribuir melhor para crescer mais”. Esses slogans se referem a objetivos válidos, razoáveis e atingíveis. A realização destes objetivos claramente enfrentou obstáculos a nível nacional. Mas a má governança e a corrupção existentes nesses níveis não são as únicas e, sem dúvida, não são as principais arenas que precisam de uma reforma radical. A ordem capitalista de hoje, que opera em colaboração com as classes politicas ocidentais, é crescentemente manipulada, de maneira a que ocorra a redistribuição da riqueza para cima. Atualmente, assim como na era colonial, são colocadas questões de quem obtém o quê, quando e como, não só dentro da classe política nacional em Luanda, mas também nas capitais financeiras e políticas das democracias ocidentais. É principalmente lá, sob a supervisão permissiva de líderes europeus, bancos centrais alemães e operadores seniores em Wall Street, que nós vemos a manutenção e o crescimento das oportunidades para o roubo.

Se os angolanos quiserem ter chance de limpar a sua política e criar uma economia política responsável e inclusiva, os sistemas de oportunidades e incentivos daí decorrentes deverão mudar. Dado o poder do setor do capitalismo financeiro ocidental sob a maior parte da classe política na Europa e na América do Norte, realizar estas mudanças não sera fácil. Apesar disso, jornalistas investigativos, militantes por justiça fiscal, grupos de pressão contra a captura corporativa, acadêmicos e outros têm se voltado contra mecanismos de manipulação que redistribuem o poder e a riqueza para cima. Estes, acompanhados pelos esforços de movimentos sociais emancipatórios e pelo distanciamento acelerado dos combustíveis fósseis e de seus enormes subsídios públicos, estão dando luz a uma nova estrutura de incentivos e a um novo contexto para todos aqueles que possuem alguma participação em Angola e no seu futuro.

[1] Representações que existem para fins imagéticos (nota da tradutora).

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