sábado, 8 de julho de 2017

CANIBALTICE | PT/MEO: balão de ensaio para o Faroeste laboral



José Soeiro | Expresso | opinião

É a primeira vez, em mais de dez anos, que se convoca uma greve geral na PT/MEO. Não é caso para menos. Quem queira um exemplo sobre a capacidade de interesses financeiros abarbatarem e desmembrarem uma empresa estratégica construída ao longo de décadas com investimento público, aqui o tem. Quem queira perceber as novas receitas de “emagrecimento” das empresas (isto é, de despedimentos em massa) encapotadas sob as mais criativas figuras legais, olhe para a PT/MEO. Está lá tudo, ou quase.

DO BES À ALTICE: A CANIBALIZAÇÃO DE UMA EMPRESA ESTRATÉGICA

Criada em 1994 a partir da fusão de várias empresas, a PT era uma potência pública que poderia, se se quisesse, assegurar o controlo e o desenvolvimento de uma insfraestrutura estratégica - as redes de telecomunicações – e capaz de regular, a favor do interesse comum, as práticas em todo o setor. Mas desde há muito tempo que a PT foi um joguete nas mãos de vários interesses políticos e económicos. Com a abertura ao capital privado, iniciou-se a sangria do grupo a favor de investimentos duvidosos no BES, de maus negócios de alienação de empresas (como a Vivo) e da distribuição espetacular de dividendos. Só em 2010, a PT entregou aos acionistas o maior dividendo alguma vez pago em Portugal: 1500 milhões de euros, livres de impostos e pagos antecipadamente para evitar o regime fiscal que entraria em vigor em 2011.

O culminar da canibalização da empresa por interesses privados ocorre com a sua privatização total, em 2015 (com o governo PSD/CDS), quando a Altice toma conta da PT por 7,4 mil milhões de euros. O que se seguiu é o que vivemos hoje: um processo de desagregação da empresa, a prática de assédio moral em larga escala e o anúncio de um dos maiores despedimentos coletivos encapotados de que há memória. Mas vamos aos factos.

O ESTADO QUE PAGUE OS DESPEDIMENTOS? HISTÓRIA DE UMA TENTATIVA FALHADA

O grupo PT/MEO, hoje nas mãos da Altice, tem cerca de 9600 trabalhadores, dos quais 3500 não estão no ativo (entre pré-reformas e suspensão de contratos). Mas o objetivo da Altice é claro há muitos meses: o seu ex-presidente no nosso país já tinha declarado que a PT tinha, na sua opinião, “o dobro dos trabalhadores necessários ao desenvolvimento do negócio”. Para se libertar deles, a Altice começou por pôr em campo uma estratégia de terror. Colocou centenas de trabalhadores sem funções (o que é ilegal) e criou uma “Unidade de Suporte” (agora intitulada “Unidade de Trabalho Temporário”), para onde enviou cerca de 300 trabalhadores aos quais não são atribuídas tarefas. A par destes mecanismos de tortura psicológica (que visam fazer com que os trabalhadores acabem por sair pelo seu próprio pé, em desespero), multiplicaram-se as formas de assédio moral pela desregulação de horários e pela pressão para a aceitação de “rescisões amigáveis” que só por cinismo levam esse nome. Tudo isto foi tão escancarado que a Autoridade para as Condições de Trabalho já levantou, nos últimos meses, mais de 70 autos de notícia por violação das leis laborais dentro da empresa.

Mas tudo isto não foi suficiente. Apesar de a Altice ter tido um “desconto” de 1,3 mil milhões de euros quando comprou a empresa, alegadamente para cobrir os encargos com os trabalhadores ditos “inativos”, e apesar de ter gerado receitas consolidadas de 2 312 milhões de euros só no ano passado (o melhor desempenho de todo o Grupo Altice), este fundo de capital estrangeiro que tomou conta da PT é insaciável. O que queria mais? Desfazer-se de cerca de 3 mil trabalhadores (um mecanismo para “valorizar financeiramente a empresa”), pondo o Estado a assumir, por via da Segurança Social, os custos económicos e sociais desta operação (em valores calculados entre 400 e mil milhões de euros).

O Governo, e bem, rejeitou que a empresa tivesse o estatuto de “empresa em reestruturação” como subterfúgio para esta operação. Impedida de recorrer a esse expediente, eis que surgiu a ideia criativa de utilizar a figura legal da “transmissão de estabelecimento” para atingir propósitos semelhantes. Mas a invocação desta disposição legal é, na verdade, uma fraude. Uma fraude que, contudo, anuncia um novo modus operandi das multinacionais abutre para encobrirem despedimentos futuros.

VIRAR A LEI AO CONTRÁRIO: A FRAUDE DA “TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO”

A inclusão da “transmissão de empresa ou estabelecimento” na lei portuguesa resulta da transposição de uma norma comunitária (a Diretiva 77/187/CEE). O seu objetivo era a proteção dos direitos dos trabalhadores no momento em que o estabelecimento é adquirido por uma outra empresa ou em que há um novo concessionário. Neste caso, a lei passou a garantir a manutenção dos postos de trabalho, mesmo quando a entidade empregadora mudava, bem como os direitos constantes nos seus contratos, o tempo de serviço, cabendo ainda à nova empresa a responsabilidade por eventuais dívidas existentes.

Ora, o objetivo da PT/MEO é exatamente o oposto. Primeiro, ficciona-se uma suposta “transmissão de estabelecimento” que é, na prática, uma cedência de alguns trabalhadores de determinados departamentos a empresas prestadoras de serviços (muitas do próprio grupo PT). Depois, obriga-se os trabalhadores a transferirem-se para empresas sem património ou para testas-de-ferro que posteriormente tratarão de concretizar os despedimentos colectivos, desta feita sem o património necessário para pagar as respectivas compensações. Esta prática não é inédita, mas começa a ser frequente.


UMA MANOBRA QUE NÃO PODE PASSAR

O que está em curso na PT/MEO é um mesmo um balão de ensaio: como despedir e precarizar numa empresa com lucros, tentando manipular a lei?

Se a PT/MEO conseguir recorrer a este expediente agora, muito mais exemplos haverá no futuro. O que falta saber é que resposta será dada. Pelos trabalhadores da empresa, em primeiro lugar, que já têm a greve marcada. Mas também pelo Estado (ACT, tribunais, Governo), pelos partidos, pela sociedade em geral. A afronta está lançada. Se a deixarmos passar, não duvidemos que outras virão.

Sem comentários:

Mais lidas da semana