segunda-feira, 7 de agosto de 2017

EU, “ANTIDEMOCRATA” ME CONFESSO



Embora o termo democracia esteja enevoado pelas meninges dos Assizes desta vida, democracia quer dizer “poder do povo”. E este só consegue ter poder quando oitenta por cento dele não está na miséria.

Nuno Ramos de Almeida | jornal i | opinião

Comecemos com uma pequena história. Era uma vez uma familiar minha que trabalhava numa importante organização internacional. Essa delegação era dirigida por um funcionário da ONU, por mandatos de alguns anos. No início dos anos 80, esse diretor foi substituído. O homem, antes de vir viver para Portugal, mandou um telex a perguntar “se havia comida em Lisboa e produtos nas prateleiras dos supermercados”. Apesar dos esclarecimentos dados de cá, ele que tinha visto, durante anos, horas de notícias sobre a situação de guerra civil em Portugal nas televisões, aterrou no Aeroporto de Lisboa com as bagagens pejadas de latas de comida. Durante os anos da revolução portuguesa, a comunicação social falava que Portugal estava a ferro e fogo, que escasseavam bens de primeira necessidade, que andavam conselheiros cubanos pelas matas a preparar a guerra civil e que o país vivia numa ditadura militar comunista.

Uma das séries de literatura de aeroporto mais famosas da época, tinha o cognome de SAS (Sua Alteza Sereníssima), e contava a história de um príncipe austríaco falido, Malko Linge, que colaborava com a CIA na salvação do mundo livre e o combate aos ogres comunistas. Durante os anos quentes da revolução, sai um livro dessa série chamado “Sourcières du Tage”, em que Malko é chamado a Lisboa, depois de dois agentes portugueses da CIA terem sido mortos a rajadas de G3 por militares portugueses. Aí colabora com a resistência democrática, feita de antigos agentes da PIDE, envolve-se sexualmente com uma Amália, provavelmente com Maria seria o único nome português de mulher que o escritor Gerard de Villiers conhecia, consumando o coito nas mesas do Grémio Literário, onde a resistente era gerente.

O intrépido aristocrata com a sua ação musculada ajuda a destruir um paiol de armas dos comunistas, que estava nas caves da António Serpa, primeira sede do PCP. Supostamente por baixo das escadas de entrada do edifício (este pormenor tem tanto mais graça, porque era aí que ficava, na realidade, a cozinha da porteira do edifício). Mas continuemos na narrativa cozinhada de Sua Alteza Sereníssima, a sua presença salva Portugal de uma ditadura comunista ao impedir uma conspiração que envolveria uma cassete sexual falsa sobre Mário Soares e um atentado a um avião com dirigentes menos radicais da revolução portuguesa. O romance, editado em maio de 1975, não diferia muito da cobertura da grande comunicação social. Nessa altura a revista “Time” fazia sair uma capa vermelha com a foice e o martelo e as caras de Costa Gomes, Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves, chamando aos três a troika que dirigia a ditadura comunista em Portugal. O problema do pobre funcionário da ONU, que desembarcou anos mais tarde, foi ter acreditado na comunicação social. A pena deve ter sido andar a comer sardinhas, em lata durante um mês.

Pouco anos depois na Venezuela, em 1989, a população pobre de Caracas revolta-se contra as medidas ditadas pelo FMI e impostas pelo governo de Carlos Andrés Pérez, político da Internacional Socialista. As medidas seguem o chamado “Consenso de Washington”, com redução dos gastos sociais, privatização de empresas públicas e desregulamentação do mercado laboral, aumento dos produtos de primeira necessidade. Dias depois de ser eleito presidente, numa cerimónia que os venezuelanos chamaram a coroação, dado o fausto e o custo, o novo presidente anunciou um pacote económico ditado pelo FMI, que durante a campanha garantiu que não ia cumprir, que previa entre outras medidas: a subida em 300% do preço dos transportes públicos. No dia seguinte às medidas, a população dos bairros pobres de Caracas revoltou-se.

O país vivia numa imensa miséria com 80% da população abaixo do limiar da pobreza. Nesse dia 27 de fevereiro de 1989, o presidente suspendeu os artigos das Constituição que garantia as liberdades democráticas e mandou a tropa disparar. Segundo os números oficiais morreram 277 pessoas. Segundo observadores independentes e organizações de direitos humanos, mais de 2000 pessoas foram assassinadas, muitas delas depois de terem sido presas e torturadas pelas forças da ordem. Só a 1 de março, a imprensa portuguesa noticiou o sucedido, com o “Diário de Lisboa” a qualificar a “agitação”, como “a pior em 31 anos de democracia”, e a citar o presidente venezuelano que qualificou os protestos, como “tragédia incrível” e declarou que a “agitação tinha posto em causa o processo democrático”. O título do artigo ainda era mais surpreendente: “Protestos contra os aumentos na Argentina provocam mais de 100 mortos” (sic).

O país, que a noticia confundia com a Argentina, vivia supostamente em democracia há mais de 31 anos. Mas grande parte da população estava excluída de facto do processo democrático. Não tinha nem voto no que faziam os governos, nem tinha direito à vida. O país tinha uma espécie de rotativismo, entre partidos ditos de centro esquerda e centro direita, que garantiam o poder das elites do costume, e sobretudo os negócios das grandes companhias petrolíferas estrangeiras. Tudo estava bem para a Europa e os EUA.

A subida ao poder de Hugo Chávez, eleito em 1998, e tomando posse em 1999, veio alterar os dados da situação. O novo poder colocou a companhia petrolífera nas mãos do Estado e usou os rendimentos desta para fazer um conjunto de programas sociais que permitiram às populações dos bairros pobres aceder à saúde, educação e saírem do limiar da pobreza. Esta política de redistribuição dos petrodólares, não alterou a estrutura de propriedade de poder económico do país, mas retirou dezenas de milhões de venezuelanos da pobreza e permitiu que muitos deles começassem a participar no processo político. Tal como antes, a maioria esmagadora da comunicação social era propriedade de grupos privados hostis a Hugo Chávez. Em 2002, esses grupos, criaram situações de violência e manipularam imagens, fazendo passar um incidente que começou com um tiroteio contra manifestantes chavistas, por um ataque a manifestantes da oposição por forças policiais. Com base nessa manipulação, forças militares contra o governo provocaram um golpe de Estado e prenderam o presidente eleito Hugo Chávez. Esse golpe foi imediatamente reconhecido pelos EUA. Nele participaram os órgãos de comunicação social e os atuais políticos que dirigem, nos dias de hoje, a oposição. A descida de milhares de manifestantes dos bairros populares, e a ação de forças militares fieis ao presidente, conseguiram derrotar o golpe. Nenhum dos intervenientes passou muito tempo na prisão por aquilo que tinha sido feito. Passado um breve período, tudo estava na mesma: os grupos de comunicação social continuavam a fazer “notícias” hostis ao governo e os dirigentes golpistas mantinham-se em liberdade a dirigir a oposição.

Em 20 eleições democráticas realizadas, os chavistas ganharam 18. Grande parte com enormes vantagens. Nas restantes duas, Chávez foi derrotado com margem mínima num referendo para um novo texto constitucional que pressupunha a possibilidade de voltar a candidatar-se, e, mais recentemente, Maduro, depois de ter ganho as presidenciais, num país em que o poder executivo é do presidente, perdeu as eleições legislativas em que o PSUV teve 41% e a oposição do MUD, 56%. Nessas eleições verificou-se a “deserção” do voto popular das grandes cidades, dos chavistas para a oposição, tendo o PSUV vencido apenas nas regiões pobres e rurais.

Essa derrota é explicada, em grande medida por um conjunto de fatores, os governos de Chávez e de Maduro não conseguiram mudar a estrutura da economia venezuelana, nem do ponto de vista da posse e do poder económico, nem da sua dependência em relação ao petróleo. Este significa 90% das exportações venezuelanas e cerca de 12% do PIB. Aquilo que tinha contribuído para diminuir a pobreza na Venezuela, tinha sido a redistribuição através de programas sociais dos lucros do petróleo. Mesmo antes da crise de 2008, a situação mudou radicalmente, os EUA, com o apoio da Arábia Saudita, conseguiram diminuir o preço do barril de petróleo de uma forma abrupta e isso prejudicou economias de países como Angola, Irão, Rússia, Venezuela e até Brasil. No caso destes dois últimos países, a aposta dos governos de esquerda tinha sido não tocar na estrutura de propriedade do tecido produtivo e apostar apenas numa maior redistribuição social dos lucros das petrolíferas. Com a crise, este programa ficou em ponto morto. Acresce que, na Venezuela, a natureza populista do chavismo, ancorado em lideranças providenciais, não fez o suficiente para empoderar, do ponto de vista político, as populações mais pobres dotando-as de um verdadeiro instrumento de participação.

A crise económica tirou margem de manobra ao governo venezuelano e a situação agravou-se com a perda de cerca de 30% do PIB, desde os anos do início da crise. No campo partidário, a oposição, apoiada e subsidiada pelos EUA, apostou num plano que tem dado frutos em outros países, agudizar a violência nas ruas, de modo a que o resto de legitimidade democrática do chavismo termine, e se esqueça o facto de ter contribuído para o fim da pobreza de grande parte da população. Estas técnicas estudadas e sistematizadas por Gene Sharp têm-se mostrado eficientes na Sérvia, na Ucrânia, no Quirguistão, na Geórgia e noutros países em que foram utilizadas, com o apoio do Pentágono.

Este processo conta com uma autentica campanha mediática, que tem muito pouco a ver com jornalismo, cujo objetivo é multiplicar o número de mortos entre os manifestantes e esconder os atos de violência da oposição. Só assim se percebe que a maioria dos jornais espanhóis publiquem a fotografia de uma explosão, dizendo que é violência chavista, quando foi um atentado numa esquadra. As televisões afirmem que foram assassinados candidatos, “esquecendo-se”, que eram chavistas que se candidatavam à Constituinte. Que a comunicação social não divulgue notícias sobre chavistas queimados vivos por opositores. E que os média garantam que os números da consulta popular realizada pela oposição são verdadeiros, sem que os registos dos votos e cadernos eleitorais sejam públicos, enquanto contestem a legitimidade da eleição da Constituinte, dizendo-a ilegal, sem se darem ao trabalho de ler o artigo 348 da Constituição, que a regulamenta. Esta cobertura enviesada não serve para denunciar a violência politica e a falta de democracia na Venezuela, ela serve para legitimar um golpe de Estado ou uma maior intervenção estrangeira. É a nova lenda das “armas de destruição maciça no Iraque”.

Aquilo que os EUA e as oligarquias locais e mundiais contestam na Venezuela não é serem dirigidas por um incapaz, ou até o crescente autoritarismo do governo de Caracas: os EUA e os seus aliados europeus dão-se muito bem com regimes, como o da Arábia Saudita, que condenou, recentemente, à morte 14 pessoas pelo crime de se manifestarem contra a monarquia, e onde não há nem oposição, nem órgãos de comunicação social contrários ao governo. O que esses poderes mundiais nunca perdoaram ao chavismo foi a tentativa de promover uma maior igualdade económica e colocar os pobres no centro da ação política. É isso que é imperdoável para quem manda neste mundo. Como disse Assange, se a Venezuela tivesse a constituição da Arábia Saudita, tudo estaria bem para Washington e o petróleo em “boas mãos”.

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