sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

PORTUGAL | Saúde 2017 – Trapalhadas e negócios, como é habitual


É preciso fazer reverter esta política e voltar a investir no desenvolvimento do SNS segundo os seus princípios fundadores, como manda a Constituição. É essa a melhor solução para os utentes e para os profissionais e a única que pode assegurar segurança no futuro.

Jorge Seabra | AbrilAbril | opinião

Não há bicho-careta de ministro ou secretário de Estado das últimas décadas que, hipocritamente, não papagueie que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) constitui «uma grande vitória da democracia», «uma espantosa construção do Portugal de Abril», parecendo que a repetição da verdade serve apenas para disfarçar as mentiras que virão a seguir.

Não há ministro ou secretário de Estado que, perante os espantosos resultados obtidos pelo SNS na sua fase ascendente, não tenha procurado modernizá-lo, flexibilizá-lo, empresarializá-lo, tornando-o cada vez pior, mais pesado, mais partidarizado, mais burocratizado e com menos dinheiro, estrangulando carreiras, equipas e serviços, encerrando, fundindo e desarticulando hospitais e centros de saúde, apaparicando negócios e outsourcings, fazendo crescer os lucros da grande privada a quem também se quer deixar o «mercado» dos cuidados continuados.

Com o fim dos governos do «arco de poder» (PS, PSD, CDS), e a travagem da brutal agressão dos seguidores da troika, a esperança de uma reversão na ofensiva contra o SNS, ressurgiu.

É verdade que as nomeações do ministro Adalberto Fernandes (gestor da PPP do Hospital de Cascais) e do ex-secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado (administrador da IASIST, empresa espanhola que vende software aos hospitais), –ambos com declarações públicas a regurgitarem elogios à Saúde privada – levantaram dúvidas sobre o seu empenhamento no reforço do serviço público.

Mas as pessoas e os governos são também a sua circunstância, novas relações de força podem criar outras vontades, e talvez na Saúde fosse de esperar uma ruptura com hábitos antigos.

Nada disso, infelizmente, aconteceu. E se, em 2017, houve uma inegável melhoria nas condições de vida da maioria dos portugueses, na Saúde muito pouco se avançou e apenas se confirmaram as piores espectativas.

Contratos soltos para resolver urgências no Sul com médicos do Norte, e consultas no interior com médicos do litoral, gratificações para mais horas e mais doentes a quem já está no burn out do esgotamento (desprezando os preocupantes estudos que o comprovam), ameaças de obrigar os novos especialistas a ficarem à força no SNS para «pagarem o que se gastou com eles», travando a fuga que o cansaço e a falta de estímulo criaram, mostram que, também para o actual Ministério da Saúde, «qualidade», «melhoria» e «ensino» resumem-se à ideia de «educar» pelo chicote e encontrar bodes expiatórios para a desestruturação e desnatamento do SNS.

Não é, pois, estranho que continue a sangria. Em 2015, segundo cálculos fornecidos pelas ordens, havia cerca de 21 000 profissionais de Saúde emigrados. Entre 2014 e 2016 emigraram 1225 médicos e, segundo um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, quatro em cada dez ponderem abandonar o SNS. Em 2014, houve mais pedidos de declarações à Ordem dos Enfermeiros para fins de emigração (2850) do que enfermeiros formados (2633). Dez por cento dos Técnicos de Saúde formados na Escola Superior de Tecnologia de Saúde em 2013/2014 emigraram. O contrário do que acontecia antes da febre de «melhorias» com que os sucessivos governos das últimas décadas atacaram o SNS.

Desiludidos com o não cumprimento das expectativas quanto às condições de trabalho e às progressões e carreiras, em 2017 abundaram os protestos e greves que mobilizaram praticamente todos os grupos profissionais da Saúde (médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares), assistindo-se também ao recrudescer dos velhos métodos de manipulação da comunicação social, usando os piores truques para falsear as reivindicações em causa e dividir os seus protagonistas.

Reapareceram parangonas insidiosamente acusatórias a toda a largura das primeiras páginas, como a do Público de 15 de Dezembro – «As infecções hospitalares baixam e 73% dos médicos já lavam as mãos», (depreendendo-se que 27% nunca as lavam...) – ultrapassando a fasquia da mais completa e dolosa idiotice, ignorando a complexidade do problema e a multiplicidade de factores favorecedores , como a falta de funcionários de limpeza, as más condições de instalações e equipamentos, doentes acamados em macas, a quebra de coerência nos procedimentos de equipas contratadas ad hoc, ou o exagero no ritmo de ocupação dos blocos operatórios, para além… da falta de sabão e/ou de desinfectantes nos locais apropriados!

Declarações ameaçadoras como as do ex-secretário de Estado, Manuel Delgado, com a superioridade moral que se lhe reconhece, afirmando que «o SNS é o serviço público que mais ausências tem ao trabalho. É uma vergonha nacional e internacional (...), e vamos apertar a malha», são exemplo desses eflúvios de manipulação e demagogia em que se induz a ideia de que, se o SNS tem uma resposta deficiente, é por falta de qualidade e dedicação dos seus profissionais.

Na realidade, nada de novo. Um discurso agressivo e divisionista contra médicos, enfermeiros e trabalhadores do SNS, que tem subindo de tom desde que os governos do «arco do poder» foram atacando as sua traves mestras, desviando as atenções da sua própria responsabilidade em todo o processo de degradação do SNS e dos fretes que vão fazendo à grande privada.

Como nas doenças, os sinais clínicos major e minor da continuação, no ano que agora acaba, da política de ataque ao serviço público estão aí:

Dos primeiros, o apontar para a continuação das parcerias público-privadas em Braga e em Cascais, cuja renegociação (e não o seu fim) foi justificada por uma «rigorosa avaliação técnica do custo-benefício», como se não fosse uma opção política. No último caso, aliás, a decisão foi adiada por mais dois anos, beneficiando o grupo privado com o prolongamento do contrato. De resto, há novas PPP em marcha, como a da construção e manutenção do novo Hospital de Lisboa Oriental, avaliada em 415 milhões de euros.

Sinais minor não faltam, para além dos já citados. Da hipócrita e descabida encenação moralista da proibição de jornadas científicas com patrocínios de farmacêuticas nas instalações do SNS (beneficiando a indústria hoteleira e dificultando a formação contínua que o Estado não assegura), ao retalhar dos cuidados primários com desresponsabilização do Poder Central, entregando uma fatia da sua gestão às autarquias num viciado processo de «municipalização», à recente criação dos Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) nos serviços hospitalares, permitindo a formação, no seu seio, de grupos autónomos de médicos, gestores e enfermeiros para a execução de «empreitadas», que contratam, com a Administração, o tratamento de um certo número de doentes por um período de três anos, actuando como uma empresa encravada no interior do Serviço.

Nada melhor para fragmentar ainda mais o SNS e promover a divisão de equipas e serviços, quebrando a sua homogeneidade técnico-científica e o ensino das novas gerações, já tão sacrificados pela acéfala corrida aos números da «produtividade» e pelos contratos de empresas externas com médicos à hora e ao quilómetro.

Nas palavras do Presidente Marcelo, referindo-se aos sectores público e privado da Saúde, há «dois  grandes hemisférios que se dividem relativamente à Saúde em Portugal», e «é por aí que passa a procura de uma fórmula intermédia…» (Diário de Notícias, 17 de Novembro).

Também o Presidente parece ignorar o papel central e prioritário do SNS inscrito na Constituição, que recusa falsos eclectismos de soluções «intermédias». E a resposta do Ministro da Saúde no modernaço e polémico focus group com o Governo, em Aveiro, já depois do súbito ataque de descentralização do Infarmed, não deixa dúvidas sobre o sentido privatizador que lhe vai na alma.

A uma pergunta sobre o atraso de uma consulta, Adalberto Fernandes assegurou que, a partir de Janeiro de 2018, haverá nova legislação «muito severa, muito determinada», não para investir mais no SNS de forma a este poder responder ao problema, mas para assegurar que os doentes tenham um atendimento eventualmente mais rápido, pago (pelo Estado) numa instituição privada.

Vão, pois, multiplicar-se uma espécie de cheques-consulta que, aparentando boas intenções, agravam o problema, consolidando o esvaziamento e desinvestimento no SNS, exportando massivamente doentes para a grande privada, deixando umas migalhas para as pequenas clínicas «locais», que assim pensam erroneamente subsistir.

A Saúde  privada, contudo, como diz o insuspeito Josep Figueras, director do Observatório Europeu de Políticas e Sistemas de Saúde, para além de outras insuficiências, «não assegura o tratamento dos 10% dos doentes que consomem 80% dos recursos» (jornal i de 26 de Novembro).

«Dois  hemisférios», de facto. Um público, subfinanciado e a definhar, que, cada vez mais, parece ser vocacionado para os pobres. Outro, o dos grandes grupos privados, com rendas asseguradas pelo Estado e pela ADSE , que enchem os cofres de novos e velhos «donos disto tudo», com PPP, convenções, contratos e sobrefacturação, levando o dinheiro que falta ao SNS, assim ajudado a tornar-se «insustentável».

A esse bolo, ainda se juntam as elevadas percentagens cobradas aos médicos e técnicos «liberais» pelos gabinetes de consulta, que, apesar da falsa fama de ganhos passados, se vêm «uberizados» com honorários esmagados pelos grandes grupos que tudo decidem e neles mandam.

Na Saúde, parecem pois quererem manter-se as tropelias do business as usual, dentro e fora do SNS, aproveitando também o inevitável definhamento da pequena privada «artesanal», cujo fim os grandes grupos privados e o Estado procuram acelerar com a longa manus cúmplice da ERS (Entidade Reguladora da Saúde), integrando-as nas «grandes  superfícies».

É preciso mudar. É preciso fazer reverter esta política e voltar a investir no desenvolvimento do SNS segundo os seus princípios fundadores, universalistas e solidários, para que o serviço público possa dar uma resposta atempada e de qualidade a todos os cidadãos. Como manda a Constituição. É essa a melhor solução para os utentes e para os profissionais e a única que pode assegurar segurança no futuro.

E, em 2017, ainda não foi isso que aconteceu.

Imagem: Inácio Rosa / Agência Lusa

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