quinta-feira, 3 de novembro de 2016

CPLP E “BOA MUXIMA”




Aline Frazão – Rede Angola, opinião

A fotografia de família da 21º Cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) deixa muito a desejar. Ver Michel Temer sentado ao lado de Teodoro Obiang, no centro da mesa, é logo uma decepção política tão grande que nos faz questionar-nos sobre qual deve ser, realmente, a responsabilidade da organização, num contexto que há muito deixou de ser estritamente linguístico. Enquanto isso, a diplomacia e a cooperação internacional continuam a definir-se como um decepcionante jogo de oportunidades, sem lugar para interesses extra-económicos e outros valores prioritários.

A língua, a cultura, a educação e o debate histórico parecem ocupar o fim da lista das prioridades de uma comunidade que tem origem exactamente nisso. Mas não é mais uma questão de língua. Se fosse uma questão de língua, veríamos a Galiza sentada à mesa. Como sabemos, a Galiza não é só o lugar onde nasceu esta língua em que escrevo. É também uma nação que reivindica o seu lugar no painel de países onde se fala português, com vários movimentos linguísticos e culturais organizados e preparados para isso.

A legitimidade da presença da Galiza nessa mesa nem deveria ser questionada. Já a Guiné Equatorial é um daqueles precedentes absolutamente embaraçosos para a CPLP, a todos os níveis, não fossem os interesses económicos a grande atenuante para que o país africano ocupe confortavelmente a sua cadeira.

Vale sempre a pena lembrar que a Guiné Equatorial é um desses países onde os direitos humanos são desrespeitados a olho nu, pela mão do magnânimo ditador, Teodoro Obiang, um dos políticos que envergonha o continente e compromete o nosso afã de democracia, liberdade e igualdade.

Lembre-se que na Guiné Equatorial ainda se pratica a pena de morte, uma pratica assumidamente condenada pelos estatutos da CPLP e contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Lembre-se ainda que na Guiné Equatorial, para além de um dialecto crioulo falado na pequeníssima Ilha de Ano-Bom, nunca se falou português, nem se ensina o português, até mesmo dois anos depois do país entrar para a CPLP. Nem sequer o site oficial do país está traduzido para o português. Já nem as aparências importam.

Podemos até colocar a língua de parte, que essa estória de Lusofonia tem muito que se lhe diga e muito mais que não se diz. Mas se a CPLP não ambiciona ser um espaço de integridade política e democrática, para que serve realmente? Quais são os interesses do povo angolano que são ali defendidos? Qual a posição da CPLP em relação às violações dos direitos humanos na Guiné, em Angola, no Brasil?

Acreditando na cooperação entre países, muito mais entre os que falam a mesma língua, alguma credibilidade terá que ser fomentada dentro da CPLP para que lhe possamos reconhecer a importância e o potencial que tem. Louve-se a proposta de António Costa, para a livre circulação e fixação de residência, entre cidadãos da CPLP – iniciativa esta que, diga-se de passagem, dificilmente será aprovada.

A verdade é que a política da “Boa Muxima” não pode estar à frente de valores tão básicos como a democracia. Por mais que existam questões de foro interno dos países, há limites para a encenação.

A CPLP, e tudo o que envolve o conceito de Lusofonia, deveria começar por ser um espaço de honestidade histórica, sobre o passado colonial, as guerras e os traumas – uma conversa por acontecer. Em segundo lugar, um espaço de horizontalidade e amizade entre povos, respeitando os afectos que existem e combatendo os preconceitos que também existem. Por fim, seria bom que a cooperação ao nível da educação, saúde e cultura estivesse ao nível da que se move numa esfera puramente económica.

E já agora, ajudaria que os líderes dos nossos países inspirassem confiança. No fundo, o problema nem é a CPLP. No fundo, o jogo está tão viciado que até assusta. Cansativo mesmo é ouvir os seus discursos vazios, onde o significado de palavras como “justiça”, “democracia”, “liberdade” e “igualdade” há muito que se descaracterizou.

Afinal, a mesma língua não garante o entendimento. Muito menos a verdade.

Talvez não nos devêssemos preocupar tanto com essa história de CPLP. Talvez seja mais sensato continuar a tecer as nossas redes culturais alternativas, mas eficazes, de menor escala, mas honestas. Que a língua seja o pretexto para um debate crítico e não para uma troca de elogios balofos, nem para o perigoso e infértil jogo dos silêncios cúmplices. Pois as reais vítimas desse jogo nunca se sentarão àquela mesa.

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Encontramo-nos num quadro de asfixia no que diz respeito à liberdade” - No livro “Angola Amordaçada”, Domingos da Cruz traça um retrato pessimista sobre os limites à liberdade dos jornalistas no país e apresenta uma comunidade habituada à “escravidão”.

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