quarta-feira, 30 de julho de 2014

A MÃE (2)



Rui Peralta, Luanda - anterior: A MÃE (1)

V - Uma análise séria á situação de periferização extrema do continente africano implica um olhar atento á especificidade das condições e contradições internas (dinâmicas internas) e á logica da expansão capitalista mundial, a economia-mundo (dinâmicas externas). No entanto o mediatismo prevalecente vive de observações superficiais, de pseudoanálises, autênticos exercícios de preguiça e de omissão que servem dois propósitos:1) são matéria para marketing; 2) limpeza da História e falsificação do presente (criação de realidades virtuais). Realçar as dinâmicas internas conduz, na actual vertente africana, ao ampliar de fenómenos que, ao serem afastados do conjunto (das dinâmicas externas) sobressaem da realidade, ficam desfocados (e muitas vezes desfocados).

Fenómenos como a corrupção ou a fragilidade da base económica, quando apresentadas apenas sob a perspectiva das dinâmicas internas levam a preconizar soluções irrealistas, ou a esconder a cabeça na areia. Este não é um assunto nacional, no continente africano. O combate á corrupção envolve uma frente vasta, que atravessa todo o tecido social, mas que passa pela atenção a reter nos factores externos, pois é pela corrupção que o neocolonialismo penetra em África, colocando em risco as soberanias nacionais. A corrupção enfraquece as instituições e afecta o desenvolvimento. Não pode ser combatida exclusivamente por vias de campanhas cívicas (muitas vezes estabelecidas em contratos nada transparentes). Implica abertura e transparência na vida pública e nas instituições, implica legislação e eficácia de meios, implica despedimentos, exonerações com conhecimento público da causa e anulações ou revisões de contratos. Nenhum combate efectivo e eficaz á corrupção é possível sem uma análise profunda às causas internas e externas do fenómeno.

O mesmo acontece na abordagem macroeconómica. É, hoje, considerada uma verdade absoluta que "África necessita de empresários", mas que sejam "verdadeiros empresários", capitalistas. Estas observações dariam vontade de rir, não fossem elas bases programáticas de desenvolvimento de muitas economias africanas e delas depende o futuro de milhões de africanos, votados á sua sorte empreendedora, buscando ilusórias riquezas. É o luxo no lixo. Enquanto os governos criam empresários a partir do aparelho de Estado ou das máquinas partidárias, alimentam desperdiçam o potencial empresário que percorre as ruas das cidades-capitais africanas, dos que operam comercialmente nas fronteiras, com base nas comunidades fronteiriças, do potencial dos rios por onde centenárias redes comerciais pré-coloniais estabeleciam a sua actividade, desperdiçam o comércio do gado e as tradicionais redes de comércio rural e perdem lugar na última carruagem do comboio da economia-mundo, sendo atirados para "os mais arejados" wagons de mercadorias.

O mesmo raciocínio de curtas vistas que caracteriza largos sectores nacionalistas africanos é responsável pela promoção do agro-negócio, das visões deslumbradas da agricultura comercial e das interjeições apalermadas com que nos discursos monocórdicos referem o vislumbre da agro-indústria. Ignora-se desta forma que a capitalização da agricultura, a via capitalista para o desenvolvimento agrícola, gera milhões de excedentes populacionais, que não podem ser transferidos para a indústria (como aconteceu na Europa), ou porque esta é incipiente ou porque as actuais tecnologias aplicadas na produção prescindem dessa mão-de obra não-especializada. Por sua vez a preponderância das dinâmicas externas nas análises a efectuar, acentuam fenómenos como o da deterioração dos preços das matérias-primas, ou as grandes tempestades provocadas pelos centros económicos e financeiros nos copos de água periféricos.

O problema é que ao isolar os fenómenos externos sem os vincular á lógica dos fenómenos internos, condenar o "exterior" como tentativa de defender o "interior", (a nação, a tradição, os "valores nacionais tradicionais") é um exercício de retórica estéril, conducente ao desastre e á perda do que se pretende defender. Um exemplo disso são as intervenções políticas e militares da NATO no continente africano. Elas ocorrem porque existem condições internas que favorecem as intervenções externas, ou seja, existe um aproveitamento de determinados factores de conflito nas dinâmicas internas, que ao serem correlacionados com factores inerentes às dinâmicas externas, proporcionam a ingerência politica externa e a intervenção militar. Mas isso ocorre porque as analises são superficiais e porque as fantasias dos discursos nacionalistas e os aparelhos de marketing e propaganda misturam ficção com realidade.

Observe-se a Nigéria. Se ligarmos o televisor e vermos os comentaristas, ou abrirmos um jornal ou uma revista e lermos os artigos sobre a Nigéria, ou, ainda, se tivermos pachorra para ouvir na radio uma voz tecer um comentário sobre a Nigéria, parece que aquele país - que há uns anos debatia-se com uma elite militar que dava golpes de estado em sequencia e ritmo certos, ou que combatia os "piratas do delta" - foi subitamente assolado por uma vaga de "terrorismo islâmico". Fica no cantinho do esquecimento (que nesses espécimes parlantes, escrivães e visualizadores, é mais um sótão do que um canto da casa) que a Nigéria, quando da sua independência, estava dividida em três grandes regiões geopolíticas, em função do modelo federal adoptado pela administração britânica: Norte, Oeste e o Leste.

O modelo multipartidário foi uma consequência desta divisão e do facto do movimento de libertação nacional nigeriano ter-se formado no seio do poderoso movimento sindical, após as impressionantes greves gerais de 1944 - 1947. Em Agosto de 1944 é formado o Congresso Nacional da Nigéria e Camarões (NCNC), liderado por Azikiwé, que seria o primeiro presidente do país. O NCNC sofre uma cisão que origina o Grupo de Acção (AG) e em Dezembro de 1949 é criado o Congresso das Populações do Norte (NPC), formação preponderante no Norte do país, região maioritariamente islâmica. Já após a independência é formado o Partido Socialista Operário e Camponês, que apesar da sua forte componente no movimento sindical e nas Ligas Camponesas, encontra-se condicionado pela divisão federal, como os restantes partidos. NCNC, no Leste, AG a Oeste e NPC no Norte monopolizam o espectro politico nacional. A coligação NCNC / NPC correspondia a uma repartição geográfica (Norte / Leste) da maioria e da oposição (Oeste, com preponderância do AG).

O Norte, formado pelas cidades-estado haússas, que aqui chegaram no princípio do século XIX, comandados pelo chefe peul Dan Fodio, era feudal e tinha prestado vassalagem aos ingleses, aqui chegados quase 1 século depois (em finais do século XIX), tornando-se suseranos de toda esta região. O descendente de Don Fodio, Sir Ahmadou Bello, era o líder do NPC e governava a região com mão-de-ferro. O NCNC, o AG e os restantes partidos tinham muitas dificuldades em penetrarem no Norte, sendo, muitas vezes reprimidos. No parlamento federal o NPC dispunha da maioria simples, devido á forte densidade populacional da região. O NPC, senhor do Norte e maioria no governo federal, mas o aparelho de estado dependia das outras duas regiões (e logo do NCNC e do AG). Este facto devia-se ao estado de atraso em que o domínio colonial britânico manteve o Norte da região, sob o pretexto de "respeitar os costumes". Desta forma a Nigéria - o único país da África Ocidental que, pelas suas dimensões, demografia e recursos, poderia constituir uma economia viável - foi fragmentado e quase retalhado. 
    
Se no Norte os conflitos sociais, latentes, eram abafados pelos emires, no resto dos pais um proletariado urbano e rural, fortemente combativo e organizado, entra em conflito com o governo federal, por um lado e com o capital nacional e estrangeiro, por outro. Um forte movimento grevista paralisa o país, enquanto no NCNC e no AG as respectivas alas esquerdas radicalizam as suas posições em relação às burguesias iorubas e ibo, que dominavam os aparelhos do NCNC e do AG. Em 1965 o mal-estar crescente leva ao surgimento de focos de guerrilha, organizadas por partidos de esquerda, que, simultaneamente, fazem sentir a sua presença nas forças armadas, onde um corpo de oficiais, maioritariamente ibo (Leste), comandava soldados haússa (Norte).

O primeiro golpe de estado é conduzido por jovens oficiais que eliminaram o presidente do Norte, Ahmadou Bello, o presidente do Oeste, Akintola, o primeiro-ministro federal, Tafala Balewa e o ministro das finanças federais, Okotie-Eboh, todos eles vistos como "agentes do neocolonialismo". Os jovens oficiais que lideravam o golpe demonstravam simpatias para com a ala esquerda do AG. Mas um segundo golpe militar, poucos dias depois (estamos em Janeiro de 1966), liderado pelo general Ironsi, aprisionou os autores do primeiro golpe e suprimiu os partidos políticos e sindicatos. Em Julho do mesmo ano Ironsi é deposto por um novo golpe militar, dirigido por Gowon, próximo aos emires do Norte. Os contínuos pogroms no Norte contra os Ibos (iniciados no governo de Ironsi) leva o Leste a proclamar a independência, sob o nome de Biafra, em Maio de 1967. A guerra (conhecida por guerra do Biafra)   começou em Julho.

Este resumo permite entender melhor o fenómeno terrorista actual na Nigéria e as suas origens nas elites islâmicas do Norte do país. Não é, portanto, uma "moda" islâmica, como pretende fazer crer a mentira orquestrada. E ao nível da dinâmica externa o aproveitamento deste factor interno é óbvio e histórico, tendo as suas raízes no domínio colonial britânico.

Quão hipócrita, pois, a figura de Obama, com ar preocupado, a oferecer a "ajuda no combate ao terrorismo" ao governo nigeriano. São historietas mal contadas, as "vagas do terrorismo islâmico". Não existe tal figura a não ser nas cabeças dos incautos e nos lábios mentirosos e sarcásticos dos "teólogos dos choques civilizacionais". E claro...nas mentes bélicas da lucrativa indústria da segurança (que precisa tanto de terroristas para aumentar as suas quotas de mercado - e o valor das acções nas bolsas - como os policias necessitam de ladrões e de "atentados á ordem pública" para manterem o seu emprego) e dos militares da NATO, com os seus "jogos africanos", a AFRICOM e os "gauleses andrajosos" que espezinham com as suas botas o corpo da Mãe...

VI - Se, de facto, não existe terrorismo islâmico, então o que se passa em Africa (Líbia, Egipto, Somália, Quénia, Mali, Nigéria, Republica Centro Africana e outros)? O mesmo fenómeno que acontece em qualquer cozinha quando a válvula da panela de pressão não funciona. Muitos factores internos foram escamoteados, reprimidos e interrompidos pelas colonizações. Os novos estados africanos herdaram essas situações e por motivos diversos não as priorizaram, ou agendaram. Esses fenómenos efervesceram nos subterrâneos das independências, fora das vistas e com as reformas estruturais, ou por alterações geopolíticas, geoestratégicas ou geoeconómicas, tornaram-se visíveis e irromperam dos subterrâneos.

A forma como o continente foi retalhado pelo colonialismo, as novas identidades geopolíticas criadas pela colonização, a erosão neocolonial e a incipiência das elites africanas, constituíram os ingredientes que levaram á actual situação da “instabilidade terrorista", prontamente aproveitada para continuar a retalhar e a reconfigurar o continente. Estes fenómenos não são causados pelas independências, mas sim pelo passado colonial. Como, aliás, aquilo a que o Ocidente denomina de "fracasso africano". O que existe são as consequências da colonização e das elites associadas ao neocolonialismo, sendo que estas consequências têm de ser analisadas e identificadas na lógica das considerações geopolíticas do neocolonialismo, geoestratégicas do imperialismo e geoeconómicas do capitalismo. 

A divisão internacional do trabalho, criadora da desigualdade entre centros e periferias (que remonta á revolução industrial na Europa dos séculos XVIII e XIX) pressupunha a participação das periferias no comércio mundial. África participou neste processo mediante a exportação de produtos, em virtude das suas riquezas naturais, que compensavam a sua baixíssima produtividade (este binómio recursos naturais / recursos humanos é dicotómico em África e é, hoje, uma das razões do difícil arranque das economias africanas). Neste contexto as potências europeias repartiram entre si o continente, na Conferência de Berlim, em 1885.

Efectuada a conquista, havia que valorizar o continente (quantificação dos recursos) e aqui entrecruzam-se as lógicas do capitalismo mundial e as das sociedades pré-coloniais. É neste sentido que pode ser compreendido cada um dos três modelos de colonização: a economia de trato, a economia de reservas e a economia de pilhagem. A economia de trato incorpora o pequeno camponês no mercado mundial, submetendo-o aos monopólios. Este sistema permitia reduzir ao mínimo as remunerações do trabalho dos camponeses e esbanjar terras.

A economia de reservas, aplicada na África meridional, organizou-se em torno da extracção mineira, alimentada por mão-de-obra barata a partir dos excedentes libertados pelo abandono da agricultura tradicional. Já a economia de pilhagem era o sistema das empresas concessionárias, que apropriavam-se de um décimo das colheitas.

Os resultados destes sistemas foram catastróficos para os povos africanos, sendo a valorização colonial a grande responsável de imensas debilidades do continente. Atrasou, em mais de um século a revolução agrícola. A economia de saque extraia um excedente de trabalho dos camponeses e das riquezas naturais sem investir na modernização, nem pagar o trabalho, saqueando os solos agrários e florestais. Por outro lado inibiu a formação e/ou expansão da burguesia africana (nos poucos casos em que a burguesia nacional cresceu, foi agenciada dos interesses coloniais, como aconteceu com a "burguesia crioula" em Angola).

As debilidades do movimento de libertação nacional em África e dos Estados africanos pós-coloniais remontam a estes sistemas coloniais e não á África pré-colonial, desaparecida nas tormentas coloniais. As críticas á África independente, às suas elites corruptas, corrompidas e corruptoras, á debilidade económica, á persistência comunitária rural, esquecem - ou fazem esquecer - que todas estas características actuais formaram-se no período 1880 e 1960 e foram perpetuadas pelo neocolonialismo. E aqui cruzam-se, em conluio, os interesses neocoloniais e os das elites africanas (tal como ocorreu no tráfico de escravos). Não foi por acaso que as preocupações geoestratégicas do imperialismo no período 1945-1990 foram no sentido de realizar este conluio. Foi ensaiado com os discursos étnico- filosóficos da negritude, étnico-políticos da autenticidade, testado nos Acordos de Lomé e finalmente mostrado abertamente ao mundo, como produto final, o afro-capitalismo, o conluio perfeito, que permite ir mais além no saque e transformar o continente num armazém, onde, num entrepiso, procede-se á nova função do continente na economia-mundo: lavagem e branqueamento...A alternativa são os estaleiros dos BRICS que nos atiram para a mesma função, sob a ilusão das "infraestruturas estruturantes" e das "parecerias solidárias" em torno do desenvolvimento.

Não lhes perdoes, Mãe, que eles sabem muito bem o que fazem.

VII - Hoje, as vagas migratórias africanas seguem em direcção á Europa, provavelmente mantendo o mesmo objectivo que a aproximadamente um milhão de anos atrás: a busca de uma vida melhor.  Para a grande maioria dos africanos a Mãe tornou-se madrasta e nem os discursos patrióticos dos dirigentes e as ilusões difundidas pelas máquinas de propaganda ou pelas imagens soft do marketing conseguem evitar essa longa marcha de morte e sofrimento, tão ilusória como os discursos das elites (que também viajam para as antigas metrópoles europeias, mas para fazer compras e tratar de negócios). As "ilhas de desenvolvimento" do continente estão rodeadas por mares de pobreza e no seu interior residem lagos imensos de miséria  e rios cujas águas são compostas pela angústia de uma esperança sempre longínqua e eternamente adiada.

A heroicidade vai definhando com o passar dos anos e transforma-se em memória ancestral. A generosidade fica pendurada no cabide e acaba por cheirar a mofo. O Homem Novo é mercadoria velha e foi reciclado, adaptado á logica da precariedade empreendedora. Os indocumentados vagueiam pelos campos, aldeias e cidades, carregando a cruz da não cidadania. As classes médias gozam o momento, endividando-se dia após dia, noite após noite, embriagando-se numa alienante atmosfera de vida fácil, escondendo a dureza da desumanização numa superficial forma de estar, camuflada de mentiras assumidas como verdades.

Parece que, tal como aconteceu antes, África vai ser mãe de uma nova espécie hominídea: o não-Homem. Mãe...será por sermos órfãos de Pai?

VIII - A situação de extrema periferia do continente tem de ser rapidamente ultrapassada. Isso implica que, no âmbito nacional, surjam das bases populares forças alternativas que reformulem as políticas colaboracionistas das elites neocoloniais, ampliando a soberania popular e reforçando o sistema democrático, não apenas ao nível da estrutura política, mas também implementando a democratização da economia (o que implica a socialização dos recursos), da vida social (maior papel interventivo das organizações de trabalhadores - sindicatos, comissões, comités, organizações camponesas, etc. - dos estudantes, micro, pequenos e médios empresários, reforço e reconstrução das redes publicas de saúde e das redes publicas de ensino, reforma agrária e consequente definição das áreas para desenvolvimento dos sistemas tradicionais (para o mercado interno) e definição das áreas agroindustriais (mercado externo), reforço das redes publicas de energia e de abastecimento de água, politica de implementação de redes públicas de transportes colectivos urbanos, dinamização dos transportes marítimos e fluviais, dinamização da rede ferroviária, redefinição e flexibilização das politicas fiscais, desburocratização, descentralização, restruturação das politicas urbanísticas, priorização da habitação social, criação de mecanismos de investimentos nas infraestruturas, criação de politicas sociais para o desemprego (essenciais para que as empresas nacionais possam proceder á renovação tecnológica), revisão das leis laborais no sentido da flexibilização e incremento da formação técnico profissional.

No âmbito da integração do continente, devem ser aceleradas as políticas de integração regional ao nível dos mercados, implementando a livre circulação de pessoas, bens, mercadorias e capitais, nos espaços regionais, caminhando depois para a integração inter-regional, até atingir a integração a nível continental.

Estas medidas essenciais permitirão a modernização efectiva do continente, corrigindo assimetrias e assumindo um rumo para o desenvolvimento que reposicionará África na economia-mundo.

Encontrado o Pai, a família retomará o seu caminho profundamente humanista. A Mãe será, então, a matriarca feliz que observa o crescimento do seu rebento: a Humanidade.

Fontes
Foley, R. Another unique species: Patterns in human evolutionary ecology Longham, Harlow, 1987.
Amir, S. Les défis de la mondialisation P.U.F., Paris, 1996
Benot, Y. Ideologies des indépendances africaines Maspero, Paris, 1969


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